A mentalidade de dieta II
29/08/13 11:10A alimentação vem sendo compreendida pela psicanálise como uma forma de comunicação e de relação entre as pessoas, forma altamente investida tanto individualmente quanto socialmente. Comer é um grande ato acompanhado por muitos toques de requinte cultural e psicológico. Satisfaz a fome e o desejo, a primeira mamada entrelaça necessidade e prazer – ato carregado de componentes eróticos altamente sofisticados. Por isto, muitas vezes, o método de dieta falha: porque não leva a vida psíquica em consideração nem os sinais vitais do comer e porque foi engendrado sob a configuração social chamada ato puro*, em substituição ao pensamento. Para quem teve a alimentação perturbada, é preciso um trabalho psicológico minucioso de investigação sobre a própria alimentação.
Sabemos que comer dá trabalho. É um ato complexo, que envolve capacidade de decisão, de percepção dos sinais internos, de escolha, de relação com o outro e com o mundo de forma mais ampla. As dietas negam isso: tratam o homem como se fosse gado, como se comesse ração, como se, via tecnologia, pudessem alterar o corpo, o paladar e até mesmo o gosto e a forma humana. A ciência e a indústria produzem enorme perturbação ao intermediar de forma massificante a relação do homem com sua alimentação. Diante das condições descritas aqui, vemos que o homem foi perdendo progressivamente a autonomia alimentar possível, já que perdeu a capacidade de se perceber diante do alimento e da alimentação. Procurando se enquadrar desesperadamente em algum “manual da boa alimentação”, acabou por abandonar o trabalho interno que comer exige. E repete essa mesma situação ao procurar transformações em seu corpo, que passa a ser tratado como maquina, como um objeto externo ao próprio homem. Ao fazer dieta constantemente e ao buscar um corpo idealizado se torna mais vulnerável a desenvolver algum problema alimentar.
Vejamos a definição desses quadros sintomáticos.
Os problemas alimentares:
A) Distúrbios do ritmo alimentar:
1. Distúrbio compulsivo de alimentação, que pode levar a obesidade ou não, mas que inicialmente é definido como toda a alimentação além da saciedade.
2. Bulimia, alimentação excessiva combinada a técnicas de alívio, como vômitos e evacuações e diurese forçadas.
3. Anorexia, fobia intensa a gordura e a alimentos, que pode gerar um emagrecimento severo e contínuo.
B) Preocupação exagerada com a aparência do corpo, com exercícios físicos, dietas constantes, modas alimentares, toda a ordem de compulsão por transformações estéticas no corpo.
C) A desnaturalização do ato de comer, mediado por tantas informações, torna a alimentação fonte de desconforto, de mal-estar, fundando uma relação perturbada com o alimento, com a saúde e com o corpo.
Os problemas alimentares acima identificados indicam um grau acentuado de perda de autonomia alimentar em consequência da mentalidade de dieta.
A mentalidade de dieta:
Diante de um prato de comida, de um buffet ou mesmo da fome, encontramos pessoas perdidas, tentando contar calorias, saber o que é cientificamente permitido e emitindo as mais criativas opiniões sobre os alimentos e a alimentação. Opiniões que parecem lastreadas em artigos científicos publicados em jornais ou revistas. Vale notar que esses “artigos científicos” de última moda descobrem propriedades exóticas nos alimentos ou mudam de opinião a cada semana. Mesmo assim ou por causa disso, estamos desconectados do ato de saciar a fome com o alimento saboroso de nossa escolha e com a quantidade que sentirmos ser suficiente. Nossa sociedade desaprendeu a comer, teme comer ou nem mesmo se permite comer e investigar a própria alimentação. Mediados por informações diferentes, nos encontramos perdidos diante do controle produzido por esses intermediários: ciência, meios de comunicação, propaganda, moda, indústria, família e escola, que criam ou propagam essa nova moralidade e produzem a mentalidade de dieta – a consequência é perda de autonomia do homem em relação a sua alimentação. A autonomia alimentar ocorre quando a alimentação é guiada pelos sinais vitais internos, pela percepção da fome, pela escolha livre do alimento desejado para aquele momento de fome e pela percepção do sinal de saciedade. É importante perceber quando usamos os alimentos para aplacar sentimentos, a comida deveria apenas aplacar a fome. Quando é usada para tapar uma falta ou diminuir uma ansiedade difusa, se torna um péssimo remédio, pois produz efeitos colaterais desagradáveis.
Mentalidade de dieta é um termo que se refere a uma política de controle típica da sociedade de massa de consumo – controle exercido sobre nossos corpos e gostos -, que nos aliena dos sinais vitais da alimentação: fome, saciedade e prazer em comer. É a causa de grande parte dos problemas alimentares, e não sua cura. Significa que o ato de alimentar-se deixa de ser uma decisão pessoal, impõe-se de fora, tomando o lugar do pensamento.
A mentalidade de dieta perturba os sinais vitais da alimentação – pessoas submetidas cronicamente a dietas costumam não saber se sentem fome e não reconhecem o sinal de saciedade. Alimentam-se rapidamente, procuram ingerir os alimentos “proibidos” em grandes porções, pois nunca saberão quando poderão usufruir desse prazer novamente. São como condenados a morte diante de sua última refeição. É que estão submetidos à privação de prazer e à privação calórica, o que os torna propensos ao distúrbio compulsivo de alimentação. Onde há privação, haverá compulsão.
*conceito do psicanalista, Fabio Herrmann, sobre as regras do mundo em que vivemos, quando o ato toma o lugar do pensamento.