Despedida
10/12/13 09:18Caros internautas,
hoje é último dia desse blog aqui na Folha. O Fale Comigo terá uma nova casa, www.visionari.com.br/falecomigo .
Venham nos visitar!
Perfil Luciana Saddi é psicanalista e escritora
Perfil completoCaros internautas,
hoje é último dia desse blog aqui na Folha. O Fale Comigo terá uma nova casa, www.visionari.com.br/falecomigo .
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Escrita por Edgard Rodrigues:
O congestionamento das velas e mastros no cais. Na Avenida Costeira Felisa toma a ultima condução e desaparece para sempre. Dela, fica apenas o travo e a luz de uma doida nostalgia, um quase soluço.
Já havia uma tristeza irremediável esperando, desde o primeiro instante em que imaginei Felisa; sentimento pertencente a uma esfera maior do que a minha e, ao mesmo tempo, rigorosamente peculiar ao meu mundo interior. Tive um árduo trabalho até Felisa se configurar, enquanto ela se debatia para abandonar o limbo — uma garota prodigiosa. Percebo agora que o f de (F)Elisa, esconde o outro nome. Então, é como se Elisa voltasse apenas para me dizer: passei por tua vida só para dar forma a essa tristeza; para que ela, ao te pertencer, conformasse a tua personagem…
Rilke aventou a hipótese de que o nosso ritmo no Universo talvez fosse o da tristeza: estou andando por uma cidade desconhecida, à noite; a minha mulher partiu e nunca mais voltará; não terei mais qualquer chance de reencontrá-la ou de encontrar qualquer outra mulher, “noites brancas, sem mulheres.” Mas, de repente, passando de uma noite a outra, de um sonho a outro sonho, numa revigorante primavera, anoitece e Fanny me espera, namorada; sem laço ou compromisso algum, além de ser a minha namorada; vem, brota, e o seu sorriso, os seus olhos lindos, plenos de noite escura, avançam e deitam sobre mim a sombra fatal da mais arrebatadora felicidade.
Hoje, isento da política, trabalho, tento recriar; recorro às palavras, à pintura, em difícil labor diário; tento me aproximar (escravo feliz) desses conteúdos ardentes, desse dia e noite que passa, volta e continua, sem memória, sobre o caminho de retorno ao jardim primordial.
Escrita por Edgard Rodrigues:
Só consegui reter Elisa por alguns minutos, tempo de atualizar um pouco as peripécias de nossas vidas de estudantes. Quando eu quis tocar no assunto pessoal ela evitou; se foi. Nunca mais a vi ou soube qualquer coisa dela. Talvez, ela fosse prisioneira de alguma complicação afetiva, da qual nunca tive ideia, que a levava a me rejeitar exatamente por gostar de mim.
Estava terminando o ano de 1973 e a esquerda, em todas as suas nuances e dissidências, se recolhia, limitava-se a “lamber as feridas”. Em 1971 o Capitão Lamarca tinha sido morto no sertão da Bahia, chegando ao fim depois de uma longa e agoniada fuga. Um pouco antes dele morrera também Iara Iavelberg a sua bela companheira. Aliás, ela matou-se com um tiro no coração no calor de um tiroteio, em meio ao gás lacrimogêneo, na eminência de ser presa e interrogada. Segundo relato na obra de Elio Gaspari sobre a Ditadura Militar Brasileira, Iara foi transportada ainda com vida, mas o policial que a levava apoiada no colo dentro da viatura, disse ao que dirigia, que não havia razão para pressa: ela acabara de morrer. Em São Paulo, Joseíta Ustra, mulher do comandante do Doi do II Exército, que acompanhava a história da paixão do casal guerrilheiro lendo cartas capturadas, ao saber da morte de Iara não conseguiu conter uma lágrima.
E por falar em Doi do II segundo Exército, fui preso duas vezes. Sem militância logo fui solto. Mas, conheci o endereço do inferno; o Doi,na Rua Tutóia. Em meados dos anos oitenta abandonei o esquerdismo, sem outra opção política, e o meu pensar tornou-se livre e pertinente.
Sonho com Elisa de vez em quando; sonho que namoramos e ela me abandona. É um sonho recorrente e, embora tanto tempo tenha se passado, quando acordo sinto a força de uma estranha realidade; presente, mas, misteriosamente anterior à minha própria história pessoal. Só recentemente julguei entender o olhar de Elisa naquela noite em que a vi pela última vez.
Escrita por Edgard Rodrigues:
O ano de 1968 “nunca terminou” e Fanny se foi para, no ano seguinte, começar a estudar em alguma faculdade da região. Eu não entrei na USP o que só conseguiria um ano depois, amargando mais um período de preparação para o vestibular. Não consegui dizer a Fanny que queria namorá-la e a sua figurinha linda partiu (na realidade) para ficar em meu pensamento, juntando-se à Deise, Elenita, Beatriz, outros amores platônicos —e Elisa. Porém, com Elisa foi diferente: a fórceps arranquei de mim, pra ela, uma declaração de amor.
Já estávamos em 1971 e as últimas datas do calendário dos anos rebeldes já tinham virado, as nuvens cinzentas, pesadas, dos anos de chumbo baixavam sobre nós. Destroçada a guerrilha, varridas as barricadas, a mão implacável da repressão caiu sobre os velhos Partidos Comunistas. A via democrática para socialismo que começara a ser trilhada no Chile terminaria em 1973 num banho de sangue.
Um amante da literatura, e péssimo aluno de letras, era eu; já Elisa, uma aplicada aluna do curso de letras anglo-germânicas. Procurou a minha amizade, andamos juntos um semestre, ela me emprestou um disco da Joan Baez. Elisa era magrinha, quase etérea. Me apaixonei aos poucos por ela, mas foi um caminho sem retorno. Não me correspondeu; misteriosa, não me disse porque. Desapareceu no segundo semestre. Passei quase dois anos procurando uma pista que me levasse a ela, sem sucesso. Mudei o meu curso para o período noturno. Uma noite qualquer eu, distraído, sentado cabisbaixo em um banco de um dos corredores da faculdade, escutei um fio de voz feminina chamar o meu nome. Ergui a cabeça e Elisa estava na minha frente, abraçada com os cadernos, a cabeça inclinada um pouco para a direita, sorrindo tristemente. O meu olhar, tenho certeza — e talvez ela também tenha percebido —, expressava quanto eu tinha esperado por aquele momento.
Escrita por Edgard Rodrigues:
“Os anos sessenta se acendiam promissores”, escrevi em algum lugar. 1968 foi uma labareda, fogo que nunca se apagou inteiramente: “O ano que não terminou”, segundo Zuenir Ventura. Nas capitais brasileiras os estudantes foram para as ruas contra a Ditadura, ergueram-se barricadas em Paris, a Argentina engendrava o Cordobazo. Eu me preparava para o vestibular. Só a USP interessava; espaço único, pronto, de oposição política. Entre os meus professores, alguns apareceriam depois nos cartazes de terroristas caçados pela polícia da Ditadura. Assim encontrei o meu professor, e amigo, Chizuo Osawa o “Mario Japonês” da VPR, sigla de facção revolucionaria comandada pelo temido Capitão Lamarca.
Pensando na revolução, solitário, tímido, eu queria encontrar uma namorada. Sem que me desse conta Fanny chegou e veio sentar-se comigo na classe. Era, antes de mais nada, uma bela garota: pequena, delicada, cabelos curtos, pretos, tez clara. Só me lembro dela vestida em saia justa e blusa, como se viesse direto do trabalho para a escola. Num começo de noite, andando por Santo André vi Fanny saindo da porta iluminada de um edifício e, de repente, achamo-nos juntos e juntos fomos para a escola, subindo as feéricas calçadas da Rua Coronel, atravessando as luzes. Sentamos, os dois, sozinhos na classe. Uma colega chegou e quase disse que estávamos namorando. Não estávamos. Acho que Fanny gostava de mim; quem sabe, do meu jeito tímido, interessado pela literatura. Fiz um desenho pra ela. O ano de 1968 seguia rumo à encruzilhada rebelde. Para mim, foi ano de Fanny, figura linda, fragrância no correr das noites, sonhos de revolução, canções de protesto. Porém, McArthur Park, longa canção-performance, americana, é que ressoa ainda hoje na minha cabeça como a marca sonora daquele ano.
Ana Tanis: Para esta semana, um poema em linha reta para nós que caminhamos tortos e nos cremos únicos. Um poema clássico porque não se cansa de ser lido.
POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)
O pensamento não pode ser considerado como algo apartado do mundo, em estado puro, flutuando por ai. O pensamento vem do mundo e a ele se dirige:
O mundo pensa-se através de mim, e o modo de meu pensar é o modo de ser deste mundo em que vivo.
É preciso mergulhar na psique do real para compreender como esta determina a interioridade do sujeito psíquico. O mundo como pensamento é psique em ação, é forma, origem e os impedimentos ao pensar também os constituem.
Vamos fazer um esforço para interpretar a forma do pensamento e não sua origem nem os obstáculos a sua realização. Encaremos o pensamento como algo encarnado no mundo e no sujeito psíquico, porque o homem vive no mundo e é um sujeito histórico, portanto quando pensa, pensa no mundo.
Realidade é a aparência representacional do mundo. Compartilhada pelos homens, a face do real mostrável, que ilude e desilude.
O Real é produtor de sentidos e esconde-se por trás de seus produtos: identidade e realidade.
Cada forma de relação humana é uma composição dos inconscientes relativos que dela participam, não é redutível ao inconsciente individual de cada um. O Real nela opera.
Conhecer psicanaliticamente o mundo significa procurar conhecer as fontes de nossas ideias sobre o mundo, que nos é inoculada pelo próprio real.
Quando somos realmente atenciosos com alguém, nos colocamos em seu lugar. Ou seja, nos identificamos com a outra pessoa. Dessa capacidade de identificação nasce a condição básica para que o amor forte e profundo se desenvolva.
Colocar temporariamente os interesses e emoções do outro em primeiro lugar e deixar, temporariamente de lado, até mesmo sacrificar, os próprios sentimentos e desejos, ocorre se pudermos nos identificar com a pessoa amada. O amor é assim, atendemos o outro, antes mesmo de nos atender. E gostamos disso.
A identificação nos faz compartilhar da ajuda e da satisfação que oferecemos. Assim, retomamos aquilo que de bom grado demos. Somos quem dá e quem recebe.
Ao sermos amorosos, recriamos e aproveitamos a bondade que tanto desejávamos para nós. Como num túnel do tempo, estando no presente alteramos as frustrações e sofrimentos passados e projetamos para o futuro as condições de reparação e cuidado que tanto nos apaziguam.
Apesar de ter sido criada por uma mãe puritana num ambiente católico e repressivo, nunca acreditei nessa coisa de demonizar o sexo, embora a lavagem cerebral fosse intensa. Com o tempo e com os amores que vivi, tenho certeza que isso que chamamos sexo entre pessoas que se gostam é a mais bela expressão da vida. Algo sublime, mas não divino nem idealizado, principalmente lindo. Portanto, hoje, nem entendo mais o que seja a tal sacanagem transgressiva associada ao sexo pela maioria das pessoas. Associo o sexo às aguas limpas, frescas e cristalinas, onde mergulhamos para amar.
Parábola
Inverterbrados e indistinguíveis,
transpirando,
nem mortos ou livres,
após o gozo é impossível cantar.
Largado aos leões,
à concha retira-se um caramujo.
Sexo é coisa molusca.
Inês Monguillott, De mim, ed.ofício das palavras