Sou procurada, frequentemente, por internautas para avaliar seus contos e poesias. Sou leitora e escritora, mas não me sinto confortável para avaliar o trabalho ficcional de alguém. Encontrei no texto abaixo [Jornal Valor, caderno Eu & Fim de Semana, 28/9/12, págs. 34-35] um conjunto de boas ideias sobre o escritor e o poeta. Espero que possam aproveitar o saboroso artigo do professor Carlos Felipe Moisés*.
“Antigamente, corria uma piada sem graça, a do sujeito que, indagado se sabia tocar piano, respondia: não tenho como saber, nunca experimentei. Só alguém muito ingênuo, candidato natural a protagonista de piada, poderia imaginar que tocar piano é questão de experimentar. Hoje, no entanto, é só substituir “tocar piano” por “fazer poesia” e já não será mais piada, com ou sem graça. Será uma resposta aceitável, digamos. Embora estejamos mais ou menos o mesmo caso, a maioria não verá aí vestígio algum de ingenuidade. Quando o da piada se aproximasse de um piano pela primeira vez, para experimentar, ninguém teria dúvida em constatar, ao primeiro contato dos seus dedos com o teclado, que ele realmente não sabe tocar. Já em relação à poesia… Ninguém tem dúvida em diagnosticar um piano mal tocado, mas poucos estarão aptos a reconhecer, diante da tentativa canhestra do aspirante a poeta, que se trata de um mau poema. A “solução” costumeira é pôr de lado qualquer critério estético, substituindo-o pelo da moralidade vigente: hoje, o sagrado direito que todos temos de experimentar e seguir experimentando, qualquer que seja o resultado, vale mais do que saber fazer e fazer bem feito.
Quem nunca experimentou, e “portanto” não sabe se sabe fazer poesia, fatalmente recorrerá, na primeira tentativa, a uma linguagem falsamente “elevada”, uma enfiada de clichês pseudoprofundos, nenhuma noção de ritmo, tudo muito frouxo, simples memória involuntária de leituras mal assimiladas. Mas como distinguir entre a tentativa bisonha, tão bisonha quanto a do pianista da anedota, e um poema verdadeiro? Nada fácil. A confusão é inevitável. O caminho possível é o principiante perceber que não é mera questão de experimentar, sob o amparo do possível talento inato e da inspiração. E em seguida assumir com humildade o propósito de aprender os fundamentos do ofício. Como? Simples: lendo, lendo muito, lendo muita poesia, mas com olhos e ouvidos atentos, espírito crítico, e não apenas para se deleitar e depois imitar, servilmente, a aparência do que tiver sido mal assimilado.
O poeta anglo-americano W.H. Auden adverte que no mundo moderno isso vale não só para o poeta, mas para o músico, o pintor, o escultor e tantos outros praticantes de atividades similares, outrora conhecidas como “belas artes”. Ter que aprender por conta própria, ele acrescenta, é um fardo pesadíssimo. Ao contrário do que acontece no âmbito das demais artes e ofícios, o aspirante a poeta não estará apto a desempenhar a sua arte se se limitar a aprender o que houver de mais avançado na área, desobrigando-se de tomar conhecimento das etapas anteriores, “ultrapassadas”. Para além ou aquém do que possa haver de obsoleto na poesia de outras épocas, os fundamentos da velha arte continuam a ser essencialmente os mesmos, o que em parte justifica o apaixonado exagero de um Leopardi, para quem “tudo se aperfeiçoou de Homero em diante, mas não a poesia”.
Que necessidade terá o marceneiro, disposto a fazer uma boa cadeira, de aprender antes as técnicas rudimentares do artesão medieval e em seguida, passo a passo, as dos seus sucessores? Ele não só pode como deve ir diretamente aos aparelhos, às ferramentas e aos utensílios mais novos e eficientes que uma oficina bem equipada lhe ofereça. Mas o caminho será outro se, em vez de fabricar uma honesta cadeira, ele se empenhar em criar, em madeira, uma obra de arte destinada não a abrigar traseiros, mas à contemplação dos apreciadores. Tomada essa decisão, nosso amigo abandonará a utilíssima seara da marcenaria, para adentrar por sua conta e risco o misterioso, incerto e inútil reino da escultura – tão inútil, incerto e misterioso quanto o da poesia. Sua tarefa será, então, similar à do poeta em potencial, obrigado a conhecer e a experimentar a arte de seus antecessores, não para retroagir nem para imitar algum obsoleto estilo de época, mas para extrair, do amplo e variado repertório tradicional, os recursos ainda válidos, necessários à expressão do seu intento genuíno e singular.
Para quê? Bem, Alberto Caeiro, o heterônimo-mestre dos demais heterônimos de Fernando Pessoa, explica: para se saber, de verdade, é preciso antes aprender a desaprender. É que umas coisas a gente sabe, outras a gente só pensa que sabe. Como as dúvidas são inevitáveis, melhor desaprender tudo e recomeçar do zero.
Se fosse só uma questão de “experimentar”, que necessidade teria o poeta de aprender seja o que for? A tradição? Mas não sabemos todos que tradicional é o que está condenado à obsolescência, devendo ser, mais cedo ou mais tarde, inapelavelmente descartado? Então, por que não descartá-lo logo de saída e começar logo a experimentar? Para que ler outros poetas, sobretudo os considerados “grandes”, como Drummond, Bandeira, Cecília e tantos outros (pensa o principiante), se isso poderá tolher a manifestação de sua personalidade, única e intransferível, e outras fantasias com que todos têm, sem dúvida, o legítimo direito de sonhar? Quando não, a autoestima e o honesto afeto que as pessoas lhe dediquem se incumbirão de confundir as coisas.
Tendo experimentado, e reconhecido o fracasso, o candidato a pianista tratará de procurar um conservatório, quem sabe, onde alguém mais experiente lhe ensine a identificar as notas e o convença a se dedicar, por largo tempo, a solfejar uns exercícios variados, muito monótonos, associando-os a noções práticas de compasso, cadência, ritmo e por aí vai. Ao longo do processo, marcado por crescente complexidade, o candidato a concertista irá adquirindo aos poucos a necessária familiaridade com o instrumento e seus recursos. Só depois, às vezes muito depois, às vezes nunca (muitos desistem no meio do caminho), começará a tocar.
Haverá aprendizado equivalente se o caso for “fazer poesia”? Sim e não. Não, se o candidato esperar que alguém lhe ensine, primeiro, a dominar o instrumento para só depois executá-lo. Mas sim, se entender que seu instrumento é a própria língua e, para utilizá-la em poesia, ser falante nativo ou ter sido alfabetizado não bastam.
Descobrir um dia o prazer de escrever um poema, que parece ter brotado do nada, fruto da inspiração, é uma experiência valiosa, que todos deveríamos ser encorajados a praticar, desde cedo. Imaginar, em seguida, que talvez sejamos dotados de um dom inato para a coisa, pode ser decisivo para a nossa formação. Mas convém prestar atenção à advertência de Manuel Bandeira: ser poeta aos 18 anos é fácil; difícil é continuar a fazer poesia vida afora.”
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*Carlos Felipe Moisés é poeta, crítico literário e tradutor. É autor de “Poesia & utopia” (ensaios, 2007), “Noite nula” (poemas, 2008) e “Poesia não é difícil” (antologia comentada, 2012), entre outros livros. Traduziu “Tudo o que é sólido desmancha no ar” (M. Berman) e “O poder do mito” (J. Campbell). “Você sabe tocar piano?” faz parte do livro “Frente & verso”, inédito.