Introdução
Desde os anos 40 o termo Pesquisa vem sendo empregado na história do movimento psicanalítico. Surgiu com certa força, entre nós da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, nos anos 90. Nas Universidades, o termo Pesquisa estava associado à prática analítica (em São Paulo), desde o início dos anos 80.
A IPA (Internacional Psychoanalical Association) estabeleceu em 1991 um Comitê de Pesquisa que destinou recursos para a pesquisa empírica em Psicanálise e incentivou a criação do comitê de pesquisa clínica-conceitual com o intuito de estabelecer bases epistemológicas mais rigorosas para a Psicanálise e, portanto, aceitáveis na comunidade científica. Passou a financiar esses projetos, entre outros motivos, em função da crise que a psicanálise enfrentava diante dos seguros de saúde, que exigiam provas da eficácia do tratamento e diante das críticas e ataques da psiquiatria, que desde os anos 80 passou a ter melhores recursos medicamentosos e procurou ser hegemônica no tratamento dos distúrbios mentais.
A ABP (atualmente FEBRAPSI) criou uma Comissão de Psicanálise e Pesquisa e a SBPSP também. As duas comissões trabalharam juntas em 2003 realizando uma Jornada e um livro, Pesquisando com o método psicanalítico (2004).
O debate sobre a questão Pesquisa chegou à comunidade psicanalítica encobrindo considerações importantes sobre a natureza epistemológica da Pesquisa Psicanalítica.
Pesquisa Psicanalítica
Prólogo
Descrever as características da Pesquisa Psicanalítica é uma tarefa difícil. Procurei começar pela postura do pesquisador, mas ao caracterizar essa dimensão afloraram todas as outras. Tentei então iniciar pela descrição do objeto, no entanto, também todas as características da Pesquisa Psicanalítica vieram à tona ao mesmo tempo.
Escrever sobre esse tema é mais que estar imerso nele. É ser tomado pelos mesmos problemas que os pesquisadores psicanalíticos encontram em seu cotidiano. Ou seja, romper e ultrapassar a separação clássica entre sujeito/objeto/método. No entanto, essa estranha situação garante a ocorrência de um processo de investigação psicanalítica. Iniciamos esse relato pela postura do pesquisador analista, que é tomado pelo método da psicanálise e suporta essa condição, afinal, temos que reconhecer seus esforços.
Características da Pesquisa Psicanalítica[1]
A postura do pesquisador psicanalítico diante de seu objeto se assemelha a do analista enquanto realiza o trabalho clínico. Há imersão no material pesquisado de forma encarnada, sendo essa a condição necessária para a aproximação ao objeto, para respeitar sua natureza dinâmica. O próprio pesquisador pode se tomar como objeto de investigação, pesquisar algo dele mesmo: questões, enigmas, conflitos, traumas, paixões. Cria-se a oportunidade de olhar-se ao espelho através de um caleidoscópio.
Toda investigação psicanalítica deve incorporar a possibilidade do objeto se transformar, perder sua unidade de maneira imprevista, para se recuperar de outra forma em outro momento. Os temas também sofrem dessa instabilidade, se movimentam, por isso a maneira de abordá-los se transforma no decorrer do delineamento do problema e na evolução da escrita. As teorias usadas se tornam fugidias, entram em crise frequentemente, pois o método psicanalítico de investigação provoca rupturas nas concepções do pesquisador, que também entra em crise. Neste processo de idas, vindas, de desconstrução, construção e reconstrução a pesquisa psicanalítica se realiza.
O processo de investigação é tão dinâmico quanto o objeto, assim se torna necessário aceitar certa dose de perda da unidade e a impossibilidade de encontrar a verdade última – imutável – para não reduzir o material clínico pesquisado a uma personagem nem engessar os procedimentos. Transcende-se à lógica clássica que dominou a metodologia científica, assumindo outra lógica, contraditória e inelutavelmente inconsciente. Essa é a condição para a pesquisa psicanalítica, posto que nossos conceitos costumam ser mal comportados – problematizam inclusive a própria idéia de conceito, porque não são tão sólidos quanto os conceitos vindos das ciências naturais.
A construção e a utilização dos conceitos em Psicanálise não obedecem às mesmas regras da maioria das áreas de conhecimento. Quando vistos a partir de diferentes campos de observação, entram em crise, faltam-lhes solidez e conexões teóricas suficientes para que cheguem a admitir derivação recíproca por meio de um processo puramente dedutivo. Disso decorre um inevitável, mas bem-vindo alargamento do próprio conceito de pesquisa científica. Nossos conceitos são construídos e operam mais próximos de uma interpretação do que de uma regra ou postulado científico. O problema da verificabilidade para a Psicanálise decorre das exigências contrastantes entre a sua peculiaridade e os requisitos das instituições médicas e leva a um beco sem saída. O resultado de uma investigação apontará fatos verificáveis ou eixos de transformação metafórica de um recorte da realidade?
Deve-se exigir das metáforas psicanalíticas que explicitem o contexto de sua invenção, por outro lado, a verificabilidade é antes uma função derivada da coerência contextual que da evidência empírica. Nem pura metaforização, nem puro fato verificável.
A escrita tem um lugar central na pesquisa psicanalítica. Por meio dela, o pensamento ganha forma e desenvolve-se. A dimensão narrativa é tomada como organizadora da experiência, e não apenas como um veículo adequado. A escrita é procedimento e resultado. Cria e é criada pela investigação, ao mesmo tempo. Por isso pesquisar e escrever irmanam-se.
O processo de escrita é dialético e delicado, necessitando muitas vezes encontrar ou desenvolver uma linguagem apropriada, para não incorrer no risco de desvitalizar o objeto, reduzindo-o e fazendo-o perder sua densidade ontológica. Sob esse aspecto, o relato da investigação aproxima-se das dificuldades de uma descrição da clínica psicanalítica, na medida em que a corporeidade da experiência está em perigo. A questão é: como dar conta da situação clínica e do objeto da pesquisa que parece sempre escorregar para fora das palavras?
O caminho de solução para a descrição dessa fluidez do objeto pode ser encontrado no processo de escrita através de sua dimensão ficcional. O discurso artístico parece mais apropriado ao objeto da psicanálise, mesmo assim, a pesquisa analítica costuma tensionar, de alguma maneira, sua própria forma de expressão. A escrita não comporta apenas uma dimensão descritiva do pensamento, mas é o próprio processo, exercendo, assim, uma função estruturante. O processo de pensar (semelhante ao processo investigativo em psicanálise) é sustentado pela escrita, que passa a ser organizadora da investigação e cumpre também o trabalho de elaboração. Ainda ilustra a importância da dimensão de cura da narrativa.
Pode-se considerar a leitura de um texto como uma forma de pesquisa. Esse tipo de leitura traz o método consigo e torna singular o modo de ler. Pesquisas teóricas investigam, desconstroem, questionam a formação de nossas teorias, a psicanálise se debruça sobre ela mesma, o próprio método se toma como objeto, exigindo um procedimento que redefina os conceitos. Sua natureza polissêmica permite um movimento constante de criação de novos sentidos, que, por vezes, arrastam consigo partes de sentidos já estabelecidos e, por vezes, se transmutam em originalidade.
Quanto à questão da relação método-objeto, observa-se que o método faz com que o olhar do pesquisador enxergue o objeto sob uma perspectiva psicanalítica. Nosso objeto não é linear, não é contínuo, nem palpável. Sendo evanescente assemelha-se a sombra de um sonho, o que requer do pesquisador aproximações sucessivas ao mesmo e linguagem para configurar um conhecimento que ocorre por rupturas e recuperações de sentido. O método cria o objeto. Por outro lado, não há método sem objeto. O objeto assim criado tem características inerentes, e redetermina o olhar metodológico, entra em relação dialética com o método. Inaugura-se um diálogo interno, do qual resulta a adequação entre método e objeto. Dessa adequação surge um procedimento, ou seja, o caminho que o pesquisador escolhe, e muitas vezes também se sente escolhido por ele, para chegar a um determinado lugar. O procedimento é a encarnação do método. Na clínica psicanalítica denominamos tal processo técnica, enquanto na pesquisa relatamos os procedimentos, os caminhos que nos levam a um resultado específico. Por isso a relação entre procedimento e escrita passa ser fundamental.
Poderíamos apresentar algum critério para dividir a Pesquisa Psicanalítica em categorias, vários seriam adequados e possíveis, mas, nenhum pareceu suficiente. Nem dividir em pesquisa teórica e pesquisa clínica nem em pesquisa empírica e menos ainda em conceitual, pois é raro e talvez impossível encontrar qualquer Pesquisa Psicanalítica em um desses estados, de forma pura. Nossas pesquisas costumam viver nas fronteiras dessas categorias ou em nenhuma categoria definível. As produções são variadas demais, não apenas por conta das características aqui descritas, que por si só deixariam qualquer categoria insustentavelmente leve, mas também porque sofrem influências dos lugares em que foram originadas. Mestrados, Teses de Doutorado, Universidades distintas, Pesquisas em Departamentos Médicos, ligadas à Filosofia, Sociologia, Literatura e História, que levam ou não em consideração o método psicanalítico, todas costumam trazer marcas de origem. À Pesquisa Psicanalítica – sua estranheza já foi explorada – devemos unir o clima institucional reinante no lugar ou instituição que a originou, as pressões econômicas, os interesses das Escolas de Psicanálise e seus temas dominantes. Sendo assim nem os resultados das Pesquisas Psicanalíticas são puros.
Sobre três tipos de pesquisa: Empírica, Teórica e Clínica.
a) Pesquisa é um termo associado à pesquisa empírica, a conotação positivista do termo causa aversão à maioria dos psicanalistas. Essa aversão não pode ser apenas vista como desconhecimento ou preconceito, pois, o método positivista de produção de conhecimento não é o método da Psicanálise. As distorções ocorrem quando se tenta tratar a psicanálise como um objeto criado por outro método que não o psicanalítico. Confundir e amalgamar campos distintos não gera qualquer conhecimento. Leva ao empobrecimento de ambos os métodos e objetos. No entanto, não é sábio descartar pesquisas e resultados que quantifiquem a clínica psicanalítica sem distorcê-la.
A quantificação pode ser entendida como um recurso auxiliar de dada pesquisa. Poderíamos chamar de pesquisa sobre psicanálise uma enorme gama de investigações válidas e importantes que não utilizam o método psicanalítico, mas que mantêm relação com a Psicanálise.
As correlações entre Neurociências e Psicanálise formam um campo de investigação interessante ao provocar e tensionar os conceitos e a prática psicanalítica. Apelam ao Freud neurologista que dialogou com as ciências de sua época e visam relacionar os postulados psicanalíticos com as funções cerebrais. Podem levar a psicanálise a um relacionamento mais fecundo com as ciências naturais. E devem se nutrir da admiração mútua (não cabe rivalizar em campos tão distintos), pois os grandes cientistas da mente admiram a psicanálise e reconhecem seus achados e resultados. Eles entendem o trabalho de Freud como o trabalho de um pioneiro sem método rigorosamente científico, mas capaz de grandes intuições e acertos. No artigo, A biologia e o futuro, Kandel (neurocientista e prêmio Nobel) afirma que as neurociências confirmam as descobertas da psicanálise, mas lamenta que essa tenha perdido seu poder criativo, por não ter desenvolvido “métodos objetivos de experimentação das idéias brilhantes que formulou”. Interessante que esse importante neurocientista denuncie nossa paralisia e procure modos de nos salvar.
Para muitos psicanalistas, a Pesquisa Empírica pode não ser uma questão relevante, pois não sofrem a pressão dos departamentos de psiquiatria e neurologia nem dos seguros de saúde contra o método psicanalítico, mas, as pesquisas sobre psicanálise podem ser úteis para aqueles que trabalham nesses departamentos e para o diálogo com outros campos de conhecimento.
Na maioria das instituições médicas evidencia-se uma demanda de resultados quantitativos, com a garantia de verificabilidade, mais próximas ao seu próprio modelo de investigação. A pesquisa psicanalítica não é considerada, pois, com frequência, seu método gera explosões no sistema conceitual, causando resistências em contextos que priorizam conclusões baseadas em procedimentos estatísticos. Exigências contrastantes entre a peculiaridade da psicanálise e os requisitos das instituições médicas levam o pesquisador psicanalítico a uma situação difícil. No entanto, ele encontra uma saída ao utilizar a análise qualitativa que é um procedimento mais habitual e próximo ao seu objeto, possibilitando um grau de validação científica aceitável na maior parte das instituições.
O avanço dos recursos medicamentosos e da psiquiatria obriga os psicanalistas a estudar a relação entre medicação e clínica psicanalítica – somos convocados a dar respostas mais assertivas para o alívio dos sintomas. Adquirimos maturidade suficiente para não confundir os campos de conhecimento. Podemos nos beneficiar do estabelecimento do diálogo e da ampliação de nosso escopo clínico, principalmente quando somos capazes de produzir conhecimento criterioso e pensamento reflexivo sobre os incrementos vindos da cultura.
b) Nos Centros de pós-graduação ligados às ciências humanas se desenvolveu a pesquisa teórica. Em seu início talvez sofresse de nostalgia da filosofia e lhe emprestasse um jeito de ser e fazer em que prevalecia o sistema conceitual dedutivo. Esmiuçar os conceitos da psicanálise desde suas raízes primevas (e até inconscientes) trouxe maior rigor ao estilo psicanalítico.
A SBPSP se beneficiou com esse rigor, refletido na questão da importância de traduções de qualidade, por exemplo. Obrigando os psicanalistas a conhecer mais profundamente as teorias utilizadas e a debatê-las – um bom antídoto contra ideologias. Conceitos e autores foram cruzados e temas novos descortinados. O questionamento tomou o lugar da simples aceitação, pois o movimento de desconstrução obriga o pensamento a não se acomodar. A inquietude é própria do nosso saber.
No entanto, segundo Herrmann, (pg 48, livro: Pesquisando com o Método Psicanalítico) os exageros levaram essas pesquisas a discutirem os conceitos em estado teórico, induzindo, ao mesmo tempo, a qualquer conclusão e ao engessamento. A clínica é a raiz do pensamento psicanalítico e a movimentação dos conceitos exige uma compreensão que passa pelo estado nascente (dos conceitos) até a maneira de sua incorporação aos usos e costumes de nossa comunidade. Faltando bases clínicas e movimentação dos conceitos alguns dos resultados provaram apenas capacidade de erudição do pesquisador.
Contribuições da Psicanálise para outros campos como o Jurídico, a Educação, a Psicopedagogia, a História, a Literatura, a Cultura foram legitimadas pelas pesquisas geradas tanto no âmbito da SBPSP como nos âmbitos universitários. Ampliaram as metáforas dos analistas e também a clínica.
c) A investigação clínica – marca distintiva da SBPSP e motivo de orgulho – se ampliou enormemente a partir dos anos 90. À clinica padrão, baseada na análise didática, juntou-se diversas modalidades de Pesquisa clínica: casais, autistas, transtornos alimentares, borderlines, família, vínculos e bebês. Desafios clínicos foram enfrentados e obstáculos internos – ligados ao temor de perda de padrão de excelência clínica – conquistaram a superação, embora certa dose de desconfiança a respeito da legitimidade dessas práticas permaneça.
A ampliação do escopo clínico e as resistências geradas por esse tipo de movimentação obrigaram os pesquisadores a desenvolver procedimentos e técnicas adequadas – não apenas discursos afirmativos e inclusivos. Os grupos de estudo que se formaram na SBPSP e cresceram nos últimos 10 anos podem ser compreendidos diante dessa tensão, pois acolhem as preocupações e protegem os interesses clínicos dos analistas. Por isso falamos de estudo como uma etapa anterior a da pesquisa, pois o pesquisador se coloca na posição de autoria, assumindo responsabilidade pelo caminho escolhido, pelo saber criado e pela publicação dos resultados.
Os meios de publicação e as formas de comunicação entre analistas ganharam maturidade progressiva. Exigências editorias e cuidado com a complexidade da escrita psicanalítica cresceram juntos. Em Psicanálise a escrita é o meio e a forma de ampliação de um campo. A publicação é parte integrante da pesquisa, por isso sua importância.
A independência do pensamento, a ousadia da curiosidade, o rigor do método e a publicação são atributos de qualquer Pesquisa. Conhecimento conjuga com liberdade, no entanto, o rigor necessário à investigação psicanalítica merece o esforço de transformar estudo em pesquisa para que a máxima – todo analista pesquisa – se torne verdadeira. Apresentar dados, comunicar com clareza os acontecimentos clínicos, falar de incertezas, de erros e fracassos, construir procedimentos, permitir que os sentidos surjam e que um saber se solidifique, mas que não seja transformado em ideologia é a marca distintiva da Psicanálise.
Consideração final:
A crise da Psicanálise que ensejou o termo Pesquisa entre nós deve ser compreendida no âmbito psicanalítico, possivelmente como resultado da repetição dogmática e reificante de nossas teorias, da valorização estrita da clinica padrão (onde o modelo da análise didática impera) e em detrimento de outras formas de clínica psicanalítica.
A colonização e infantilização do pensamento analítico sofrido ao longo dos anos de implantação da Psicanálise fora da Europa e USA colaborou para o aprofundamento dessa situação ao procurar impedir o surgimento de um pensamento psicanalítico mais inovador.
Os conflitos entre as Escolas de Psicanálise também contribuíram para diminuir a criatividade dos analistas, que se viam desde a formação expostos a uma corrente de pensamento dominante e obrigados a tomar um partido precocemente.
Hoje testemunhamos um despertar para pesquisa e a necessidade de romper com a colonização sofrida e com a visão estrita das Escolas. Mestrados, Doutorados e estudos bastante elaborados, com um sentido de autoria e de apropriação crítica do pensamento analítico vêm sendo desenvolvidos pelos analistas da SBPSP nos últimos 20 anos.
Bibliografia:
Herrmann, F e Lowenkron, org. Pesquisando com o método psicanalítico, Editora Casa do Psicólogo. São Paulo, 2004.
Kandel, E. R. A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria in Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul vol. 25, N.1, JAN/ABR. 2003.
*Artigo publicado no livro: Dimensões – Psicanálise. Brasil. São Paulo
[1] Parte das características aqui descritas foi extraída da apresentação do livro Pesquisando com o Método Psicanalítico, de autoria de Iliana Warchavchik, Luciana Saddi e Magda Guimarães Khouri.