O álcool é a droga mais usada no mundo. Em baixas quantidades tem efeito estimulante e libera a censura; em grandes funciona como um sedativo: causa lentidão física e emocional, sonolência e torpor. Alguns bebedores têm maior tolerância ao álcool e não sentem os efeitos desagradáveis da ingestão de grande quantidade. Portanto, o risco de se tornarem dependentes aumenta. Inúmeros fatores físicos e psicológicos levam os bebedores à dependência. Para conversarmos sobre o alcoolismo convidei o Dr. André Malbergier, coordenador da Unidade de Dependência Química do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina USP.
Luciana: O que te levou a se interessar por psiquiatria e a estudar, especificamente, as adições ao álcool e as drogas?
André: O interesse pela clínica começou no 3o ano da Faculdade de Medicina, após uma brevíssima experiência em cirurgia. Naquela época, me interessei pelas áreas da medicina que nos colocavam em contato próximo e intenso com os pacientes. Percebi minha vocação para fazer histórias clínicas e minha “curiosidade médica” em conhecer a fundo os sintomas e o sofrimento dos pacientes. Desde aquela época, preocupava-me em estabelecer uma boa relação médico-paciente. Esta forma de ver a profissão em combinação com o acelerado desenvolvimento das neurociências, no final do meu curso de medicina, me levou a escolher a psiquiatria.
A área de álcool e drogas é muito complexa, pois a abordagem médica exige combinação de conhecimento e estratégias terapêuticas nos campos da neurobiologia (efeitos das drogas no cérebro) e da psicoterapia, além da estreita relação médico-paciente. Acho este modelo muito atraente e desafiador.
Luciana: Em termos quantitativos qual a incidência de alcoolismo na população mundial? E no Brasil?
André: Na média, o alcoolismo atinge entre 10 a 15% da população mundial. No Brasil as taxas giram em torno de 12%.
Luciana: Como o alcoolismo se desenvolve?
André: Os indivíduos entram em contato cada vez mais precocemente com o álcool nas sociedades ocidentais. Alguns adolescentes, provavelmente por vulnerabilidades genética, pessoais, familiares, etc., vão estabelecer padrões nocivos de uso do álcool após a experimentação. Em geral, começam a beber em finais de semana com amigos e já se percebe que eles têm tolerância maior a grandes quantidades de bebida. Isto pode ser considerado uma virtude, há afirmações comuns nesta fase: “sou forte para a bebida”, “não fico bêbado enquanto meus amigos passam mal”. Estas pessoas vão criando uma relação intensa com a bebida, que se destaca como um valor em si no cotidiano. As situações sociais passam a necessitar do álcool. O círculo social vai se organizando com outros que também valorizam a bebida e o uso vai se tornando banal, corriqueiro, esperado e comum. As quantidades de álcool ingeridas e a frequência do uso vão crescendo e a relação entre o sujeito e o álcool vai se tornado cada vez mais problemática, com episódios recorrentes de excessos, riscos, conflitos familiares e legais e problemas profissionais.
Luciana: Há pessoas mais vulneráveis a doença? Por que?
André: Sim, existem vários estudos mostrando que o alcoolismo tem um caráter genético. Além da genética, alguns traços de personalidade e outras doenças psiquiátricas também aumentam a chance de um indivíduo desenvolver o alcoolismo.
Luciana: Como saber se um parente ou amigo precisa de ajuda em relação ao consumo de bebida? Há sinais claros ou esses variam de acordo com a pessoa?
André: Alguns comportamentos podem ser notados pelas pessoas próximas:
1. Hipervalorização do consumo. O sujeito considera o uso de álcool essencial e imprescindível.
2. Consumo diário e dificuldade de interromper quando uma situação exige: doença, viagem, problemas familiares, etc
3. Episódios de perda de controle do consumo
4. Necessidade do álcool para socializar
5. Estreitamento de repertório social e de lazer.
6. Tremor, ansiedade ou dificuldade para dormir nos dias que não bebe.
Luciana: O dependente ou abusador de álcool costuma buscar tratamento ou é a família que se mobiliza diante de inúmeros prejuízos?
André: Em geral as pessoas próximas acabam tentando “convencer” a pessoa que ela tem um problema com a bebida e, então, tentam levá-la a um tratamento.
Luciana: Qual é o tratamento para um dependente de álcool?
André: O tratamento consiste em:
1. Estabelecer um vínculo de confiança, sem julgamentos sociais ou morais.
2. Motivar (e não confrontar) o paciente a perceber seu problema.
3. Oferecer e discutir as alternativas de tratamento: farmacologia, psicoterapia e grupos de autoajuda.
4. Estimular o paciente a promover mudanças em sua vida
5. Promover a abstinência. Nesta fase, muitas vezes, são necessárias medicações como benzodiazepínicos e vitaminas para diminuir o desconforto e riscos associados a interrupção do uso de álcool.
6. Estratégias de prevenção de recaídas. Discussão dos benefícios que o indivíduo teve com a abstinência e evitação de situações de risco de uso de álcool.
7. Em tratamento para dependência de álcool, é comum haver recaídas.
Luciana: Ele pode voltar a beber ou precisa ficar em abstinência para sempre?
André: Dependentes, em sua esmagadora maioria, não conseguem beber socialmente. Alguns poucos pacientes que têm uma dependência leve e buscaram ajuda precocemente, podem conseguir um consumo moderado.
Luciana: E para a família como é lidar com um filho ou um pai ou marido que bebe?
André: Os familiares devem buscar ajuda também. A dependência é uma doença crônica e que exige muito das pessoas próximas. Sentimentos de raiva, culpa, ódio e desprezo são comuns em familiares.
Luciana: Há alguma forma de prevenir o alcoolismo?
André: Sim. Retardar ao máximo o contato com o álcool. Quanto mais velhos entrarmos em contato com a bebida, menos chance de ter problemas.
Supervisão parental é uma das mais eficientes formas de prevenir o problema. Os pais devem saber das rotinas de seus filhos e abordar diretamente o assunto. Não banalizar o consumo de álcool como algo “normal na adolescência”.
Intervir em adolescentes que bebem com frequência também já se mostrou eficaz na prevenção de alcoolismo.
Luciana: Como você vê a psicoterapia de base analítica no tratamento desses pacientes?
André: Para casos agudos, quando o sujeito está passando por problemas graves com a bebida, eu veria a psicoterapia analítica como um coadjuvante. A prioridade, a meu ver, neste momento, seria uma intervenção mais direta e orientadora, com medicações e controle de exposição a bebida associada a uma supervisão externa. Quando os pacientes melhoram, a psicoterapia analítica pode ser utilizada no médio e longo prazo, mas, não indicaria como abordagem isolada. O desejo do paciente deve sempre ser valorizado e o interesse dele por esta abordagem deve ser respeitado.