A Lei vem sendo um tema fundamental para a Psicanálise. Freud, por exemplo, por volta de 1910 estava muito interessado em compreender como ocorreu a passagem da natureza para cultura. Segundo ele, a Lei é figura central dessa passagem.
O Direito nas últimas décadas se interessou pela Psicanálise. Afinal, a capacidade de julgar não é isenta de paixões. As mudanças recentes nos papéis sociais e na configuração da família exigiram dos estudiosos do Direito maior aproximação com a Psicanálise. Para falarmos sobre a relação entre Psicanálise e Direito convidei Giselle Groeninga, psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP e Diretora Nacional do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) e vice-presidente da International Society of Family Law.
Luciana: Como surgiu seu interesse pelo estudo da relação entre Psicanálise e Direito?
Giselle: Além da impotência e mesmo indignação face ao sofrimento de alguns pacientes que estavam envolvidos em questões judiciais, senti necessidade de entender, buscar um sentido, ao que me parecia mais da ordem do sintoma, de manifestações patológicas do comportamento humano que emergiam nos processos judiciais. Verifiquei que: o inconsciente, as resistências e as transferências também se exprimem no Judiciário.
Atualmente, vejo os processos judiciais como sintomas de relações disfuncionais e, o próprio funcionamento do Judiciário, tem muitas vezes um efeito iatrogênico, acentuando e criando novos sintomas.
A Mediação pareceu-me um bom caminho para atuar nesta interface. Mas ela, por si só, não é suficiente. Fazia-se necessária uma base de conhecimento que contemplasse o referencial psicanalítico para compreender o Direito.
Luciana: Em qual área do direito há maior contribuição da Psicanálise e por quê?
Giselle: Em três frentes. Uma epistemológica. A partir desta frente, a compreensão do Direito em suas diversas áreas, ganha em qualidade, profundidade e mesmo eficácia.
Uma segunda frente seria na área do Direito de Família e Sucessões, em que a Psicanálise tem se mostrado fundamental – não só para a compreensão da complexidade das relações familiares, dos conflitos e sua cronificação, mas da origem das crises que tem levado cada vez mais a uma “judicialização” dos conflitos. Na área do Direito de Família, as relações disfuncionais, sintomáticas, evidenciam-se, sobretudo, nas questões relativas ao cuidado com os filhos, questões conhecidas pelo inadequado termo “guarda”. O concurso do psicanalista tem sido apreciado como consultor a escritórios de advocacia, como perito nomeado pelo Juíz ou assistente técnico das chamadas partes em litígio ou ainda, como mediador de conflitos.
Finalmente, uma terceira frente se encontra na área legislativa. Por exemplo, a Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM tem sido consultada a respeito de Projetos de Lei, e reformulou o “Estatuto das Famílias”, que deverá ser reapresentado em breve.
Luciana: Há conflito entre Psicanálise e Direito ou há uma relação complementar entre essas duas áreas?
Giselle: A luta pela hegemonia de um saber sobre os outros é antiga. E é inegável que o Direito como forma de exercício de poder e autoridade, tem esta tradição. Mas a visão interdisciplinar, que conjuga a cooperação entre as disciplinas, é uma realidade da pós-modernidade, de tempos que exigem novos modelos e formas de pensar e lidar com a complexidade. O Direito tem pedido “socorro” à Psicanálise por se defrontar com a impotência para lidar com as questões que lhe chegam. Direito e psicanálise são idealmente complementares, mas a realidade também mostra uma resistência à cooperação e, curiosamente, encontro resistência maior por parte dos psicanalistas, inclusive pelo fato de ser uma ciência relativamente nova.
Mas o cenário é promissor com a cooperação entre os Operadores do Direito e o que denomino de Operadores da Saúde, dentre os quais estão os psicanalistas.
Luciana: As mudanças sociais, principalmente a que a família nuclear vem sofrendo, são abarcadas pela Legislação hoje?
Giselle: Sem dúvida alguma. Vejamos a questão do casamento e adoção por pares homossexuais. O Brasil tem acompanhado os países mais avançados nesta matéria. Aliás, à frente da França que acaba de assistir uma manifestação contra tais avanços.
O interessante é que a legislação parece estar caminhando muito mais para um enfoque ético do que propriamente moral ligado aos valores religiosos de determinados grupos. Movimento que acompanha, com atraso, o estado que se propõe laico.
O Princípio da Dignidade Humana e a aceitação da diversidade têm fundamentado tais avanços. Por outro lado, cabe a ponderação de que o fato da legislação ou jurisprudência abarcarem as mudanças sociais não as legitima no sentido moral ou psicológico. Esta é uma questão espinhosa, mas que deve ser enfrentada. Por exemplo, acaba de ser concedida licença maternidade a uma mulher que amamentaria artificialmente (por meio de uma técnica que leva leite ao ducto mamário) o filho da companheira que não pode fazê-lo. A concessão da licença, do meu ponto de vista, não absolve a situação de questionamentos que se fazem necessários. Se antes algumas decisões do Direito “condenavam” ou “absolviam”, muito baseadas no uso social que se fazia do sentimento de culpa, atualmente a ênfase deve ser mais em permitir ou proibir, deixando para outras áreas pensar nas consequências dos referidos avanços. Outro exemplo estaria na legalização do aborto – prática que traz consequências psíquicas, não necessariamente ruins, mas que devem ser reconhecidas. Seja como for, as mudanças sociais que vem com rapidez impressionante, demandam a conjugação de várias áreas do conhecimento.
Luciana: Por que cresce a judicialização de conflitos?
Giselle: É resultado de vários fatores, aliás como nos ensina a Psicanálise com o conceito de multideterminação.
Conjugam-se fatores tias como: o esgarçamento do tecido social, a maior permeabilidade as fronteiras da família às influências, e também vigilância e cuidados externos, à crise de autoridade e à crescente angústia face à impotência e inadequação dos modelos de que dispúnhamos. Há, neste último aspecto, a busca por um terceiro que alivie a angústia.
O outro lado da moeda é o Judiciário ser o “bode expiatório” de todas as insatisfações.
O Judiciário tem sido chamado a resolver questões que obviamente transcendem sua possibilidade de compreensão e atuação. E, o pior, é que ele tem tomado para si (contratransferencialmente) esta tarefa. Vejamos por exemplo a Mediação que tem sido alvo de Políticas Públicas como se coubesse ao Judiciário resolver conflitos. Quando muito ele pode resolver a lide – a moldura legal de um conflito, mas não os conflitos que a psicanálise nos ensina que se transformam e não se resolvem…
Luciana: É possível julgar de forma isenta?
Giselle: A ideia de neutralidade não se mantém nem mais na física. Quando muito o que temos é a imparcialidade – posição equidistante em relação aos polos do conflito.
O que sabemos atualmente, e aqui temos uma contribuição da Psicanálise, é que razão e emoção não podem ser dissociados – quando isto ocorre temos distorções. Deve haver um balanceamento entre estas formas de aproximação da realidade – o pensamento e o sentimento.
Aliás, a raiz etimológica da palavra sentença é a mesma de sentimento. Assim, os sentimentos estão sempre presentes, a questão é em que medida e como se faz uso deles. O ideal é a utilização da empatia – colocar-se no lugar do outro, e que deve ser submetida ao crivo da razão e das normas que regulam as relações. Vala a máxima do conhece a ti mesmo para conhecer o outro.
Luciana: A Psicanálise investigou os sentidos dos tabus, o significado das sociedades totêmicas, as tábuas da lei de Moises e outros aspectos da vida humana relacionados a proibições e transgressões. Até sugeriu haver alguns criminosos que procuravam a punição da lei, pois eram motivados por sentimento, inconsciente, de culpa. Como você considera esses estudos?
Giselle: Acho fundamental a discussão da culpa para o Direito. Minha dissertação de mestrado foi a respeito da culpa e o uso indevido que se fez e se faz dela no Direito de Família. O sentimento inconsciente de culpa sempre está presente e o desenvolvimento da personalidade se dá no questionamento da culpa, de seus aspectos subjetivos, para que esta possa se transformar em responsabilidade. Um questionamento sempre presente. Mas o sentimento de culpa foi e é utilizado em grande medida como forma de controle social, pelas religiões, pelo Estado e mesmo pela família. O uso do culpa no Direito sempre foi via torta de entrada da subjetividade e de controle indevido da sexualidade. Cabe ao Direito tratar do que é mais objetivo, da responsabilidade. Esta mudança ocorreu, por exemplo, com o fim da separação e o divórcio direto, em que não mais se discute o fim do casamento e as culpas, com a penalização de um ou de outro. Com o fim das discussões a respeito da culpa, que era uma invasão na intimidade das pessoas, a ênfase recai mais na responsabilidade e em aspectos objetivos.
Atualmente vivemos uma mudança de paradigma importante – a do paradigma da culpa para o da responsabilidade. E esta mudança implica também em uma diferenciação das áreas de atuação do psicanalista e dos profissionais do Direito.
* O Brasil sediará, em Recife, em 2014, o XI Congresso Mundial da Sociedade Internacional de Direito de Família que conta com mais de 80 países membros. O tema será Direito de Família – universalidades e singularidades.