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por Luciana Saddi

Perfil Luciana Saddi é psicanalista e escritora

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Psique do Real

Por Luciana Saddi
21/11/13 09:37

mais Fabio Herrmann para nós:

O mundo em que vivemos participa de cada um de nossos pensamentos de três formas diferentes:

1) um pensamento simples e diminuto, particularíssimo, como: vou tomar chá ou café hoje de manha?  Se dirige ao mundo inteiro por via associativa, contém uma ideia de tempo (manhã), uma ideia de escolha, uma noção de comida, de começo, de estimulante. É um juízo sobre o estado de coisas do universo, ainda que seja um assentimento e uma conformidade e não um questionamento.

2) o mundo comparece inteiro em cada pensamento como contexto, é o lugar onde o pensamento se deu, determina uma posição relativa dentro do todo.

(1 e 2 não são tão vitais para a psicanálise quanto o 3)

3) o mundo participa de cada pensamento pensando-o, determinando como se constitui o sujeito psíquico. A psique nos usa como lugar de sua ação, cria-se no real, desenvolve suas propriedades historicamente, é infundida no individuo por seu tempo e cultura e molda-o no estilo presente de pensar, no entanto, temos a ilusão dominá-la como instrumento.

Portanto, uma psicanálise do quotidiano precisa levar em conta o regime do pensamento do mundo para não desarraigar o sujeito individual, porque desarraigado ele não existe.

Vivemos num mundo, numa unidade concebível pelo pensamento e pela emoção que nos confronta de cara e nos determina por dentro.

Psique é produção viva de sentidos, não é individual nem social, é real. Um dos estratos do real humano que interessa para a psicanálise.

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O sentimento de culpa inconsciente

Por Luciana Saddi
19/11/13 09:43

É sabido que quando percebemos em nós impulsos de ódio contra quem amamos nos sentimos preocupados e cheios de culpa, mas, tendemos a deixar esses sentimentos de lado, pois causam dor e angústia.

Mesmo assim, de escanteio, esses sentimentos dolorosos continuam a se manifestar, aparecem de forma disfarçada, perturbando as relações pessoais, e muitas vezes são projetados nos outros.

Por exemplo: muitos de nós sofrem quando não recebem o apreço que esperavam. Isso acontece porque não se sentem dignos da atenção alheia – impressão de inferioridade confirmada pela possível frieza dos outros.

Alguns estão constantemente insatisfeitos com eles mesmos, sem nenhum dado objetivo que justifique essa insatisfação, não se sentem à vontade com a própria aparência nem com a qualidade de seu trabalho ou com suas habilidades de maneira geral. Acreditam que sempre estão devendo alguma coisa.

Sensações dessa natureza estão associadas ao sentimento de culpa inconsciente. O motivo pelo qual algumas pessoas exigem elogios e aprovação incessante é a necessidade de obter provas de que são dignas de amor. Esse sentimento surge do medo de ser incapaz de amar verdadeiramente. E se agrava quando falha o autocontrole sobre os impulsos de ódio. Pessoas assim temem ser um perigo para quem amam.

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Idealcoolismo

Por Luciana Saddi
18/11/13 09:46

Resenha do livro, Idealcoolismo, de Antonio Alves Xavier e Emir Tomazelli, realizada pela psicanalista Vera Lamas:

A Coleção Clínica Psicanalítica, dirigida por Flávio Carvalho Ferraz, e editada pela casa do psicólogo, nos oferece mais uma grande contribuição para a compreensão do psiquismo humano, nesta obra tratando especificamente de um tema bastante controverso, a gênese do alcoolismo é reconstruído pelas mentes e mãos dos psicanalistas Antonio Alves Xavier e Emir Tomazelli.

A reconstrução já se inicia pelo título do livro: Idealcoolismo. Termo trabalhoso, tema trabalhoso, mas o livro trás atualização. Provoca e atualiza.

Esse título propõe, para início de conversa, a participação da psique humana, da história emocional do humano na construção do alcoolismo e se dirige para além das questões químicas e bioquímicas tão referenciadas nos dias de hoje.

Os autores nos apresentam que a relação estabelecida entre o indivíduo e o álcool, nos estados de alcoolismo, é da ordem da idealização, por isso o termo idealcoolismo, no sentido de que o álcool se torna a ilusão do divino ou o próprio divino que o protege da realidade e da sua humanidade frustrante em troca de sua oferenda, seu corpo e sua alma. Isto é, o estado emocional que o álcool provoca através de sua ingestão leva o indivíduo a um tal estado de afastamento das angústias e de sobre-vôo sobre os problemas humanos, que funda uma ¨religião¨ de veneração, fidelidade e entrega. Daí a intensa fidelidade ao álcool na vida do idealcoolista/alcoólatra: viver com um deus, viver como deus, viver como sendo um, com ele, para sobre-viver à realidade que teima em apavorar ou a humanidade que para ele traz infindáveis limites e sofrimentos.

O alcoólatra está tão infantilizado que vorazmente e narcisicamente (narcisismo de morte) se entrega fielmente ao deus álcool, torna-se um só com ele, evita a inveja e a frustração que a realidade nele provoca e afasta-se de sua frágil humanidade. Essa situação nos envia à gênese do idealcoolismo.

Embasados pelas formulações de Klein, Steiner, Brenman e Rosemberg, os autores nos remetem às primeiras relações no desenvolvimento humano, onde a solução oral para o afastamento das angústias é a forma privilegiada. Neste cenário se apresenta uma relação mãe-bebê bastante comprometida quer seja por componentes ativos de ansiedade, idealização e inveja, mas especialmente pela presença maciça da pulsão de morte. Acresce-se a isso, a ausência de um pai amoroso, protetor, dessexualizado. O encaminhamento dessa relação inicial mostra a formação de uma organização patológica com seus elementos de estreiteza mental e masoquismo mortífero, isto é, a predominância do Princípio de Nirvana e do prazer sobre o princípio da realidade: a dor como alívio da excitação e a ilusão de completude para não entrar em contato com a falta.

A excessiva presença da pulsão de morte transforma o masoquismo primário, a tolerância da dor para o crescimento, em desejos prazerosos de dor, em acúmulo de investimento libidinal na excitação como fonte de prazer ao invés de descarga; a inveja de não ser o ideal e de não ter o ideal conduz o alcoólatra à arrogância e onipotência e portanto a estreiteza mental com o assassinato do outro. Sobram ressentimentos e rancor, além das mágoas de um passado-presente, como combustíveis importantes para a repetição da parceria fusionada com o álcool. Relação com o mundo destituída do próprio mundo e portanto do triste, do belo e da responsabilidade. Por isso, um humano não humanizado.

Por fim, o livro nos apresenta três encontros. Primeiro a possibilidade de encontro da técnica psicanalítica com o paciente idealcoolista, paciente este que olhamos com certa esquiva, dúvidas e desesperança a respeito de seu tratamento. Encontro esse que produz uma contribuição: a introdução na técnica e na relação do choque de humanidade ou o ¨chum¨,  que visa humanizar o inumanizado-desumanizado, isto é, apresentar ao paciente a humanidade: o triste e o belo, o absurdo e o não absurdo, a responsabilidade, a vida e a morte. Expor exatamente aquilo que o ofende e o ataca, é o que deve ser oferecido e cultivado na relação clínica, relação essa que por si só já está assentada na realidade e na humanidade do par psicanalista-psicanalisando.

O choque de humanidade orienta-nos no árduo trabalho de caminhar com esses pacientes para a re-humanização de uma mente, desta vez capacitada a pensar e a privilegiar a vida, a reconhecer o humano potente, mas não onipotente.

O segundo encontro está na apresentação de um caso clínico, o encontro entre o analista e seu paciente idealcoolista, onde podemos não apenas ver os conceitos, a técnica e as reflexões apontadas pelos autores, mas também a trama emocional de ambos, as dores, as questões, as dificuldades do percurso.

O terceiro e último encontro é com a instituição mais tradicional na recuperação de alcoólatras, o AA. Um encontro entre os psicanalistas autores e sua disponibilidade de compreender a tábua de princípios da instituição, os doze passos do AA, bem como as pessoas que participam e a dirigem.

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Do livro, Covil, de Julia de Souza

Por Luciana Saddi
14/11/13 10:56

Ana Tanis: Para esta semana, uma homenagem à poetisa Julia de Souza, e ao seu novo e muito bem-vindo covil.

 

sem saber qual o mistério

me indetermina

aguço meu corpo de gruta

afago a fome de raposa

aceno ao enxerto do tempo

pouso as mãos sobre a árvore que

é teu peito, pergunto

fui eu my love ou foi o

vento?

 

Julia de Souza, In.: covil.  Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.

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A cura em psicanálise

Por Luciana Saddi
13/11/13 09:58

Na minha experiência clínica, muitos pacientes se beneficiam da medicação psiquiátrica, mas muitos não se beneficiam significativamente e outros, quando o sofrimento é tamponado, acabam cometendo certos atos, sem se darem conta, que causam o mesmo tipo de sofrimento que sentiam antes, aos outros. Os sofrimentos impingidos ao outro costumam ser da mesma natureza que os sofrimentos que o sujeito sentia, anterior ao tamponamento.

Eis algumas respostas dadas pelo psicanalista Fabio Herrmann num artigo chamado, “A cura”,  na versão publicada no Jornal de Psicanálise em 2000.

 Afinal, o que a psicanálise faz que a medicação não faz? A psicanálise cura. Bem, um paciente tem certo tipo de transtorno, de sintoma, a gente dá um remédio, o transtorno desaparece, o sintoma desaparece, o paciente sarou, mas o que sara sem curar volta pior. Sarar: estabelecer acordos, fazer as pazes.

furor sarandi – Freud estava chamando atenção para a loucura, a agitada loucura de quem quer ver sarar a qualquer preço.

…a palavra cura —sofreu uma reificação pragmática na medicina, como se se tratasse de consertar alguma coisa. Há um mal, conserta-se o mal, e o aparelho funciona de novo. Essa é uma visão demasiado pragmática, que motivou certos problemas. Essencialmente, o pragmatismo consiste em se limitar a objetivos possíveis de serem alcançados, mesmo que eles sejam inúteis, deletérios, prejudiciais.

A psicanalise não tem como objetivo a remoção de alguma coisa, o sintoma. Nosso objetivo é curar: quer dizer cuidado, cuidar de alguma coisa, quase não se usa a palavra cura nesse sentido, mas usa-se descurar, como, por exemplo, em descurar da aparência. Mas, também quer dizer, em latim, direção ou administração. Usa-se a palavra curadoria, por exemplo — o curador, o que toma conta, o que dirige. Como em português, em latim também significa tratamento e fim do tratamento; não só o fim do tratamento, a “alta”, o estado de quem tem alta, mas o próprio tratamento, uma cura. Também quer dizer, mas só em latim, obra, livro. O mais interessante de tudo, embora tratamento e alvo do tratamento sejam as acepções mais correntes, cura denota aquilo que é causa de nossos cuidados, cuidados de amor se costuma dizer, ou pelos menos costumava-se, na poesia romântica.

Outra concepção da palavra cura: é referir-se a cura analítica como a cura dos queijos. Sabendo que cada um de nós é como um tipo de queijo. No processo de cura um brie não se transforma em parmesão, mas ao ser curado pode atingir um ponto melhor de maturação!

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Alcoolismo

Por Luciana Saddi
12/11/13 09:32

Os jovens entram em contato com a bebida alcoólica e com as drogas cada vez mais precocemente em nosso país. Quanto mais cedo se dá esse contato, maior a chance de desenvolver abuso ou dependência. Por isso o número de abusadores, alcoolistas e dependente de drogas vem crescendo assombrosamente. Especialistas afirmam que pelo menos 20% da população tem uma relação perturbada com o álcool.  Diferente do uso recreativo praticado pela maioria das pessoas que tem como finalidade proporcionar prazer gustativo, relaxamento e um ambiente de convívio social mais agradável.  

Alguns psicanalistas consideram o alcoolismo não apenas como toxicomania ou como comportamento adictivo. Eles tendem a ver o processo que leva à dependência como um processo de busca por um estado ideal de onipotência e completude, um culto ao álcool e às drogas, uma religião degradada, que gera perda da humanidade.

Procura-se nos efeitos psicossomáticos da bebida alcoólica ou das drogas escapar da condição humana e tornar-se uma espécie de Deus, mas, o que está em jogo é uma atração mortífera. Há uma conduta de cunho psico-religiosa degradada, revelando uma estreiteza mental. Portanto, o alcoolismo e a drogadição não significam simplesmente uma dependência da química do álcool e das drogas, antes de tudo, falam de fuga da condição humana e aderência a uma fé psicótica no ideal de tornar-se inumano, poderoso e completo.

Por ocasião da instauração da doença pode se dizer que os dependentes desejam ter total “independência” do corpo e usam os efeitos psicossomáticos dos estados de narcose na tentativa de dissolução da própria sensação de corporeidade. Querem atingir, por meio de fantasia onipotente, uma condição de incorporeidade e imortalidade.

Na ânsia de negar-se humano o corpo é sentido como um grande inimigo, por trazer de forma concreta e inegável as vivências de individualização, diferenciação, limitação e mortalidade. Por isso o corpo é alvo predileto dos ataques autodestrutivos do alcoólatra ou dependente de drogas.

Apenas nos estados mais avançados da condição os sintomas neurológicos manifestam-se e a dependência física se expressa.

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Curto circuito

Por Luciana Saddi
11/11/13 09:00

Internauta: Namoro um rapaz que sofreu um acidente de moto e quase morreu. Ele agora está em desespero e depressão. É normal acontecer isso? Por favor, se puder me explicar, eu agradeço. Não sei como agir, se desapareço, se tento dar mensagens positivas? Tô triste demais, desanimada e sem conseguir comer e dormir!

Luciana: há inúmeras formas de reagir a situações como a que você relata. Algumas pessoas tendem a ficar eufóricas, chegam a se sentir verdadeiros super-homens diante do perigo de morte – negam o terror que os acidentes ensejam. Outras são tomadas por ataques de pânico e depressão. Também há os que se apavoram e mudam de vida, de religião e etc. Alguns fazem promessas e pactos e há quem desenvolva doenças psíquicas ou psicossomáticas. Difícil sair ileso de uma experiência que mobiliza enormes quantidades de angústia e ansiedade, e que rompe com qualquer ideia de continuidade da vida. No centro dessa ruptura está o contato com algo difícil de ser entendido. A quase morte nos coloca numa situação muito estranha, faltam sentidos, palavras, imagens. É quando ocorre algo que remete o sujeito ao desamparo inicial da vida. Chamamos de trauma essa ruptura difícil de significar. É indicado que seu namorado procure um analista.

Quanto a você: parece que está identificada com ele. Como se o acidente fosse seu também. Isso indica um funcionamento tipo esponja, onde você absorve todos os sofrimentos a sua volta. O que me permite dizer que há uma tendência sua a realizar ligações fusionais. Cuidado. Ligações dessa espécie causam muito sofrimento e enormes confusões entre sujeito e objeto. Portanto, creio que você deva procurar um analista também.

 

Nova concepção da morte

Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso
na carne, como sempre ocorre aos seres vivos;

um aviso, um sinal que não lhe veio de fora,
mas do fundo do corpo, onde a morte mora,

ou dizendo melhor, onde ela circula
como a eletricidade ou o medo, na medula

dos ossos e em cada enzima, que veicula,
no processo da vida, esse contrário: a morte.

Ferreira Gullar, versos iniciais, in Muitas Vozes.

Dica: Gente como a gente, primeiro filme de Robert Redford como diretor. A história é trágica, a morte por acidente de jovem promissor leva seu irmão a amargas consequências psicológicas – maternidade, paternidade e fraternidade serão questionadas.

 

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Ser Brotinho - crônica de Paulo Mendes Campos

Por Luciana Saddi
08/11/13 08:51

Ana Tanis nos manda mais uma maravilha de crônica:
Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.

Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.

É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível e tão inteligente e natural. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.

Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.

É telefonar muito, estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.

Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.

É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.

Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada fala.

Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.


In.: O Cego de Ipanema, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960, pág. 15.

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Roda Viva continua

Por Luciana Saddi
06/11/13 09:40

Alguns pensamentos e perguntas sobre o Programa Roda Viva dessa semana, quando entrevistei o psiquiatra Valentin Gentil: http://tvcultura.cmais.com.br/rodaviva/depressao-e-tema-de-debate-no-roda-viva-com-valentim-gentil-filho

A psiquiatria é um ramo da medicina que progressivamente foi se afinando com os métodos científicos: pesquisas químicas e de imagens, utilização de protocolos, busca de validação de resultados, etc. Dentro dessa perspectiva, onde se situa o sujeito com sua singularidade?

Onde começam os sintomas e onde termina o “eu”?

Qual a relação entre funcionamento psíquico, história de vida, personalidade e sintomas? Por que os DSMs fazem questão desligar esses pontos, justo os pontos que uma análise liga? Os DSMs são   um instrumento alienante?

Qual a ideologia que comporta o diagnóstico por meio de um manual de conduta médica ateórico, como pretende os DSMs? Ao entender o homem como uma série de sintomas, encontra-se uma solução que corresponde, exatamente, aos interesses da sociedade de massa de consumo. Pois, amplia-se a gama de pessoas que devem ser medicalizadas. E, nos aproxima, enquanto sociedade, do livro de Aldous Huxley, O admirável mundo novo.

A ficção científica tende a se tornar realidade, essa é uma das lições da literatura.

Então, a psiquiatria baseada em sintomas e não em psicopatologia seria, dentro das especialidades médicas, a mais vulnerável à ideologia dominante? O Simão Bacamarte  (personagem do conto, O alienista, de Machado de Assis) dos tempos atuais: coloca todo mundo para tomar remédio psiquiátrico – antes ele colocava todo mundo no hospício.

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A moralidade migrou do sexo para a comida!

Por Luciana Saddi
05/11/13 05:05

 

 

“Hoje observamos que a transgressão desloca-se muito mais para o valor calórico do que para o campo sexual. Os psicanalistas Fábio Herrmann e Marion Minerbo, no artigo “Creme e castigo”, publicado no livro, Psicanálise fim de século (1998), mostram como os complexos morais migraram da sexualidade para a dieta, da cama para a cozinha e para a mesa. O que antes se expressava em termos de sexualidade agora parece ressurgir como moral dietética, conservando muitas regras e normas características do discurso sexual. Quanto de pecado tem uma barra de chocolate?” – Magda Guimarães Khouri, Psicanalista.

Para ler mais: http://www.corpomercadoriaecultura.com/1/post/2011/05/corpos-em-evidncia-por-magda-guimares-khouri-parte-1.html

 Para saber mais: http://gentabrasil.blogspot.com.br/2013/10/se-de-conta-2013-questione.html

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