Até pouco tempo pessoas com 50 ou 60 anos eram consideradas velhas em nossa sociedade. No entanto, a expectativa de vida aumentou em função do desenvolvimento da medicina, da tecnologia e das ciências causando transformações importantes na representação da velhice. Os consultórios dos psicanalistas testemunham esse novo paradigma, pois hoje somos procurados por cinquentões e sessentões com bastante frequência, situação rara há 20 anos atrás. Para conversarmos sobre os cinquentões e sessentões convidei, Alessandra Cruz, psicanalista e idealizadora do site VISIONARI, http://www.visionari.com.br/ focado no público acima de 40 anos.
Luciana: Quais as mudanças ocorridas nos últimos 20 anos, com relação à questão do envelhecimento?
Alessandra: O Brasil vivencia há aproximadamente três décadas o gradual processo do envelhecimento populacional, há muito conhecido pelos países europeus. Isto ocorreu, sem dúvida, pelos fatores que você já mencionou. Em 1940 a expectativa média de vida do brasileiro era de 43 anos e os dados recentes do IBGE apontam para uma média que se aproxima dos 73 anos. Ainda nesta linha das projeções demográficas, até 2025 a população de idosos será superior à de crianças e jovens.
Aliada a este fator demográfico, vemos também uma grande transformação cultural. Há pouco mais de 20 anos era parte da nossa cultura a clara delimitação dos ciclos vitais. Cada etapa da vida era sustentada por práticas bastante específicas: infância, adolescência, vida adulta e velhice. Indivíduos com 50, 60 anos estavam terminando sua fase produtiva e se aposentando, com os netos passando a fazer parte deste cenário. A fase do aprendizado e das conquistas teria se encerrado, restando ao indivíduo ocupar lugares de pouca relevância no cenário social, como as aulas de artesanato e demais atividades para ocupar a cabeça e o tempo – configurando a entrada na velhice.
Atualmente presenciamos um embaralhamento dos ciclos vitais. Com isso, muitos estão voltando para a faculdade, outros iniciam uma nova carreira sob a alcunha do que hoje chamamos de aposentadoria ativa, outros se casam novamente e têm filhos com idades iguais ou muito próximas às dos netos, iniciam práticas esportivas até então impensáveis. Enfim, vivemos uma verdadeira revolução neste sentido. Os cinquentões que eram considerados velhos, hoje vivem uma realidade muito diferente da velhice, aproximando-se muito mais dos modos de vida praticados na juventude. Pode-se fazer uma infinidade de críticas ao atual padrão que se instaura. Uma crítica absolutamente pertinente diz respeito ao aspecto da juvenilização da cultura, ou seja, ao fato de que todas as etapas da vida passariam a seguir o estilo performático de vida jovem, como um padrão de excelência, um valor em si. Mas também é inegável que presenciamos uma maior proliferação dos modelos que podem acompanhar o processo de envelhecimento e este aspecto é muito positivo.
Luciana: As atuais representações sobre a velhice, que tomaram forma através das figuras da Terceira Idade e da Melhor Idade, colaboraram para a valorização do velho no espaço social?
Temos que fazer uma diferenciação entre a velhice e o processo de envelhecimento. A velhice é uma categoria ainda excluída, caracterizada pelo declínio inegociável das funções vitais as quais todos estaremos sujeitos, quanto mais longevos formos. Os mecanismos sociais procuram tirar os holofotes desta realidade, trazendo à baila este senhor, ou senhora entre os 60 e 70 anos, ativos, saudáveis e que ainda respondem aos apelos da economia de mercado. Estes são os verdadeiros destinatários do discurso sobre a Terceira Idade.
Já a experiência da velhice propriamente dita, que foi adiada para os 80, 90 anos por conta das melhorias que já mencionamos, ainda se encontra excluída do cenário social. Até mesmo os menos idosos, acometidos por doenças incapacitantes ou desfavorecidos economicamente, não encontram representação nesta imagem bem sucedida da Terceira Idade. Esta exclusão, comumente associada a uma questão do mundo capitalista ocidental, foi verificada em culturas milenares ou indígenas, que também excluíam os velhos que já não podiam produzir. Este velho deveria possuir algum diferencial para ser aceito, como ser um sábio, um homem de poder ou de grandes posses. Neste sentido, não houve qualquer mudança quanto à valorização do velho.
Portanto, as reais possibilidades de inclusão social do velho, atualmente divulgadas através do ideário da Terceira Idade, merecem uma problematização a partir desta perspectiva.
Luciana: Cinquentões e sessentões, o que vêm procurar nos consultórios de psicanálise?
Penso que é válido destacar alguns pontos. Considerando-se todas as transformações que mencionei acima, é esperado que este cinquentão tenha sido novamente lançado para o caldeirão das inquietações e angústias que envolvem o universo das conquistas, das relações amorosas e do trabalho, basicamente. Não que este indivíduo estivesse fora deste mundo há algumas décadas, mas sua vida apontava para uma maior estabilização quanto às realizações e projetos. Atualmente ele se encontra no jogo, pensando na carreira, em separar-se, em voltar a se casar, em viajar, em comprar uma casa nova, ou iniciar outro ciclo profissional. Mesmo muito deprimido, insatisfeito ou infeliz, pode vislumbrar uma saída, na medida em que se movimentou na direção de um tratamento, no caso, uma análise. Isto também traz para o consultório um sujeito que ainda acredita que poderá se reinventar, pois aceita questionar-se e deseja realizar mudanças tanto em seu mundo interno, como em seu entorno. A ideia de que nesta idade já não há o que mudar ou de que a vida lhe reserva um enredo já consumado, tem se alterado para estas pessoas.
Outro aspecto não menos importante diz respeito às exigências impostas a este sujeito, que cada vez mais tem que responder à demanda por uma alta performance, seja sexual, profissional, ou para atender os padrões estéticos hoje aceitáveis. Esta realidade acirra de forma bastante cruel o sentimento de velhice, como uma analogia à ideia de exclusão, de todos aqueles que não seguiram corretamente a cartilha, sejam estes jovens de 20 anos, ou adultos de 50. Este fato é, sem dúvida, gerador de bastante conflito, pois a ideia de fracasso ronda como um fantasma. Não responder a estas demandas é ficar velho, não como uma condição inevitável, mas como uma vivência pessoal de fracasso. É por esta razão que se usa a expressão “fulano tornou-se um velho”. Pois a qualquer momento podemos cair nesta categoria. O temor da doença, o medo do ócio e da impotência sexual para os homens, o temor em deixar de ser fisicamente atraente para o parceiro, o terror da finitude, o confronto com os fantasmas suscitados pela velhice dos próprios pais, também são aspectos importantes. É uma fase de grandes transformações para aqueles que estão casados há muitos anos, pois, muitas vezes, o envelhecimento do parceiro é um autorretrato o qual se procura evitar, gerando muita hostilidade e falta de companheirismo.
O interessante é que vemos uma mudança em nossa realidade de consultório, que desconstrói a ideia de que a plasticidade capaz de promover algum tipo de mudança é algo para os mais jovens, pois vemos a capacidade de insight também presente num adulto desta faixa etária.
Luciana: o que é o envelhecimento para essas pessoas?
As ideias transmitidas a respeito do envelhecimento em nossa cultura são bastante ambíguas. Somos bombardeados por recursos estéticos, nutricionais e medicamentosos que prometem combater o envelhecimento e, neste sentido, reproduzimos uma cultura que também não aceita qualquer forma de sua manifestação. Em outras palavras, este só é aceito se adotarmos uma série de práticas de bioascese, termo este utilizado pelo psicanalista Jurandir Costa.
Os atuais discursos sobre o envelhecimento ativo, a melhor idade, a aposentadoria ativa e o envelhecimento saudável associado ao mínimo de marcas corporais que atestem a passagem do tempo, também apontam para o exercício destas práticas. Caso contrário, o sujeito é visto como desleixado, descuidado e estará fora do jogo, entrando para o rol do descarte e da velhice. No entanto, ainda que este modelo de inclusão possa ser extremamente opressor, também passou a oferecer muitas possibilidades, pelo menos para a faixa entre os 50 e 70 anos. Antes era impensável uma pessoa de 50 anos ir para fora do país fazer um curso de línguas, por exemplo. Ou iniciar uma prática esportiva, como a corrida ou a bicicleta. Os indivíduos desta faixa etária, que disponibilizam de boa saúde e de recursos financeiros para participarem do jogo pertinente à sociedade de consumo, não mais se incluem na categoria da velhice. Atualmente, estas pessoas podem se reconhecer envelhecendo, mas não como velhas.
Vemos, então, o surgimento de termos como envelhescência, numa analogia à adolescência. Nesta faixa etária o sujeito percebe as diferenças (alguns não!) em sua vida, mas não se acha velho, pois o sentimento de juventude persiste em sua auto representação. Muitas mudanças que vão se operando gradativamente também passam despercebidas e será somente através do olhar do outro ou do espelho, que haverá a percepção da dimensão da passagem dos anos. Como apontou Simone de Beauvoir em seu livro, A Velhice, “o indivíduo idoso sente-se velho através do outro, sem ter experimentado sérias mutações; interiormente não adere à etiqueta que se cola a ele: não sabe mais quem é”.
Luciana: Há alguma particularidade importante ao se completar 50 anos?
A particularidade que merece ser ressaltada é justamente a sensação de se estar entrando para o segundo tempo do jogo. Ou seja, este sujeito se encontra confrontado, de diversas formas, com a sua dimensão temporal. A perspectiva de declínio e a ideia de que não se tem mais todo o tempo do mundo, nem todo o gás. Torna-se também mais presente o confronto com as perdas (pais, amigos, juventude, eventualmente a própria saúde, separações). É por isso que esta fase pode ser muito interessante para se procurar uma análise. É lógico, também, que muitos não reagem da mesma forma e vemos a encenação destes desconfortos através de atuações que podem se manifestar por meio de excessivas intervenções estéticas, práticas excessivas de exercícios físicos, uso inadvertido de remédios para aumentar a potência sexual e outras. Deparar-se com os limites que vão se presentificando no próprio corpo pode também ser uma vivência bastante assustadora acirrando as fantasias hipocondríacas, por exemplo.
Em nossa cultura, ter 50 anos é um marco que aponta para o confronto mais direto com a questão da finitude e cada um reage de uma determinada forma a este imperativo. Este processo é melhor aceito pela sociedade quanto mais se consiga atingir os padrões pautados pelo envelhecimento ativo, saudável e que não aponte para a decrepitude física ou mental.
Querem nos vender a ideia de que é possível ser longevo sem que se passe por esta realidade, mas nenhuma descoberta científica aponta para esta possibilidade. Assim, pode-se aceitar envelhecer, mas aceitar a decrepitude é muito difícil.
Luciana: Li uma pesquisa afirmando que na faixa etária dos 60 anos quase não há depressão. Como você observa isso?
Os estudos sobre a taxa de incidência de depressão nesta faixa etária são inconclusos. No entanto, muitos destes estudos apontam para a sua diminuição, quando comparada à população mais jovem. Mas ainda tem-se que considerar o perfil sócio cultural, a questão de gênero – as taxas de depressão em mulheres são maiores do que em homens – e a condição asilar do idoso, onde se encontraria, novamente, uma maior incidência de quadros depressivos.
O fato é que algumas pesquisas sugerem que o processo de envelhecimento também atuaria, para alguns indivíduos, como um fator de proteção à depressão, na medida em que estes teriam desenvolvido recursos para enfrentar as adversidades, os assuntos e situações que poderiam causar-lhes dor e sofrimento.
Na medida em que, no consultório, não trabalhamos diretamente com estas estatísticas, podemos observar a intensidade da ruptura que os quadros depressivos podem acarretar nas pessoas mais velhas. Alguns estudos psicanalíticos nesta área estabelecem relações importantes entre o fracasso na elaboração do luto e a emergência de quadros demenciais, por exemplo.
Luciana: Como surgiu a ideia do Visionari? A que veio?
A temática do cinquentão surgiu a partir da vivência de consultório. Eu também, quase cinquentona, me interessei pelos novos formatos e alternativas de olhares sobre o mundo, e junto com minha sócia, Carla Simon, criamos a VISIONARI. O desejo é que o site se configure como um espaço de positivação das realidades vividas pelo público adulto acima dos 40 anos. Com isso, surgiram as seções do site: um determinado olhar sobre a moda, reflexões e inquietações, assuntos de saúde que passam a nos preocupar, a busca por expressões da cultura que possam nos interessar, a busca por cronistas que dialoguem com as agruras destes senhores e senhoras. É frequente pessoas desta faixa etária sentirem que não existem locais para ir e divertir-se, pois estariam todos ocupados pelos jovens. Seria este um sintoma da nossa cultura? E como interpretar isto? O desejo é consolidar o site como uma espécie de telescópio através do qual o cinquentão enxerga o mundo. Lançamos sugestões, ideias, possibilidades, alternativas e também abrimos para a expressão daqueles que têm algo a dizer sobre estas questões. Afinal, parece que vai emergindo certo desejo de darmos o nosso testemunho sobre o que vivemos e pensamos.