Os jovens entram em contato com a bebida alcoólica e com as drogas cada vez mais precocemente em nosso país, com isso o número de alcoolistas e de abusadores vem crescendo assombrosamente. Especialistas afirmam que pelo menos 20% da população tem uma relação perturbada com o álcool. Os psicanalistas, Antonio Alves Xavier¹ e Emir Tomazelli², lançaram o livro, Idealcoolismo³, onde reúnem o resultado de seus estudos, pesquisas e formas de tratamento clínico psicanalítico desenvolvido durante mais de uma década.
Os autores consideram o alcoolismo não apenas como uma toxicomania ou como comportamento adictivo, mas também como uma espécie de religião degradada. O culto ao álcool, a busca por um estado ideal de onipotência e completude, a perda da humanidade no processo de instauração da doença e a recuperação do alcoolista são alguns dos pontos tratados nessa entrevista, concedida por Antonio Alves Xavier.
Luciana: O que é o idealcoolismo?
Xavier: O ‘idealcoolismo’ é um uso peculiar dos efeitos psicossomáticos da bebida alcoólica, que é usada pelo indivíduo com o objetivo de atingir o ideal de escapar da sua condição humana e tornar-se uma espécie de “prótese de Deus”. É diferente do uso recreativo praticado pela maioria das pessoas, pois este tem como finalidade proporcionar prazer gustativo, relaxamento e um ambiente de convívio social mais agradável. No ‘idealcoolismo’ há uma conduta de cunho psico-religioso – subjetiva, particular e degradada, cuja patologia está basicamente apoiada nos masoquismos mortífero e moral e numa organização patológica de estreiteza mental. Essa conduta tem um caráter daquilo que a cultura chama de religião e que nós chamamos de loucura. Portanto, o alcoolismo não é simplesmente uma dependência da química do álcool produtora de um comportamento aditivo, mas é, antes de tudo, inconscientemente, uma fuga da condição humana e uma aderência psico-religiosa a uma fé psicótica no ideal de tornar-se inumano, poderoso e completo.
Luciana: Há diferença entre esse diagnóstico e o de alcoolismo?
Xavier: Não existe diferença entre idealcoolismo e alcoolismo, mas sim uma maior precisão da nomenclatura. A complexidade do alcoolismo se reflete em sua própria nomenclatura. Avaliamos ser pouco conveniente e nada esclarecedor usar indiscriminadamente os termos alcoólico, alcoolista, etilista, alcoólatra ou dipsomaníaco para nomeá-lo como se fossem sinônimos.
Sugerimos nomear o alcoolismo de ‘idealcoolismo’ para uma maior precisão conceitual e da nomenclatura, com a inclusão do conceito de ideal no de alcoolismo. A união de ideal + álcool + ismo clareia a orientação de nosso pensamento, pois ‘ismo’ é um sufixo do grego (ismós), formador de substantivos que denotam sistema, conformação, imitação, como cristianismo, materialismo, mimetismo etc. Por extensão, usando ‘idealcoolismo’ enfatizamos que o alcoolismo não é só um ato de embriaguez, mas um claro sistema que expressa a busca psicorreligiosa do ideal através da ingestão do álcool. Vale dizer que a psicanálise está distante tanto das concepções do senso comum, que consideram o alcoolismo uma questão moral e de costumes socialmente reprováveis, quanto das que incluem o alcoolismo em nomeações como dependência química, toxicomania, dependência de substâncias psicoativas, entre outras.
Luciana: Como consideram o corpo e a dependência física na abordagem idealcoolista?
Xavier: Em sua ânsia de negar-se humano, o corpo é sentido pelo idealcoolista em seu estado alcoólatra como um grande inimigo por trazer para ele, de forma concreta e difícil de negar, as vivências de individualização, diferenciação, limitação e mortalidade. É por isso que o corpo é alvo predileto dos ataques autodestrutivos do alcoólata. O alcoólatra deseja ter uma “independência” física e não uma dependência física e usa os efeitos psicossomáticos do álcool na tentativa de dissolução da sua própria corporeidade. Primariamente, não é que ele dependa da química do álcool em si, mas sim que ele quer usar seus efeitos para atender suas fantasias mágico-onipotentes de ser possível atingir uma condição de incorporeidade e imortalidade.
É secundariamente, apenas nos estados mais avançados da condição alcoólatra, que os sintomas neurológicos manifestam-se como consequência e a dependência física acaba por expressar-se.
Luciana: Quem está mais vulnerável para desenvolver uma relação perturbada com o álcool, como evitar?
Xavier: Em primeiro lugar, quanto à vulnerabilidade, acreditamos que uma relação perturbada com o álcool se instaura no indivíduo, porque nele ocorreram falhas nos processos de sua humanização, desde muito cedo. Entre elas podemos destacar as seguintes:
– No confronto entre humanização versus inumanização, o inumano – fiel às suas origens – impõe o caráter repetitivo e predeterminado da vida instintual em prejuízo da vida pulsional. Este fato dificulta a criação de um aparelho psíquico mais bem equipado e favorece um campo propício para se estabelecer a compulsão alcoólatra.
– Assim, afirmamos que existindo falhas nos processos de humanização, intensifica-se a sensibilidade ao desamparo, à frustração, à perda e os indivíduos ao ficarem mais infantilizados fazem um permanente esforço para encontrar, pelo uso psicorreligioso dos efeitos químicos do álcool, a ilusão mágico-onipotente de completude e poder, mergulhando em intensas sensações prazerosas, provenientes de um ídolo cruel que o alcoólatra coloca acima de suas necessidades vitais.
– A oposição entre o humano e o ideal inumano, apresenta-se logo no início da vida, na relação mãe-bebê. Como afirma Brenman em seu livro “Crueldade e estreiteza mental”,(1985, p.272): “A mãe pode ser uma mãe que tem apenas a possibilidade de tolerar um bebê ideal e que rejeite o bebê real. Por sua vez, o bebê pode fazer ataques à mãe real por ela não ser o seio ideal, aquele seio que satisfaz.
– Finalmente, um fator causal que deve ser destacado como produtor da vulnerabilidade do indivíduo ao alcoolismo é a presença de uma mãe absorvente e um pai ausente. Quanto à função paterna, notamos nitidamente que sua ausência impede a instauração adequada do processo de humanização, desde o vínculo mais tenro da relação mãe/bebê. Este impedimento é também tratado minuciosamente em nosso livro “Idealcoolismo”: o filho abandonado à mãe, sem um modelo masculino favorável para se identificar e beneficiar-se do desenvolvimento de uma imagem paterna estruturante, promotora de limites e do fortalecimento da singularidade. O ‘idealcoolista’ desprotegido pelo pai, não recebe orientação e referências que facilitem seu amadurecimento psíquico.
Em segundo lugar, para que seja de alguma forma evitada a vulnerabilidade ao alcoolismo acreditamos ser inadequado colocar o idealcoolismo no contexto moralista de falta se caráter, falta de vergonha, fraqueza, uma vez que ele é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde como uma doença, e pensamos igualmente ser muito útil um acompanhamento feito pelos pais do indivíduo desde criança e na sua adolescência, sobre os sinais de uso constante ou exagerado da bebida alcoólica.
Luciana: E o tratamento?
Xavier: Quanto ao tratamento consideramos que o choque de humanidade (chum) é uma abordagem técnica crucial no tratamento do ‘idealcoolismo’ em qualquer método ou forma de sua compreensão. Levar o “homem do álcool” à possibilidade de iniciar um tratamento e mantê-lo em tratamento é uma espinhosa tarefa. Por outro lado, como o alcoólatra é incapaz de pedir ajuda, por ser muito orgulhoso, narcisista, ele somente tem chances reais de deixar suas alcoolizações alcoólatras de lado quando chegar a um razoável contato com sua inexorável condição humana. Essa é a função básica do choque de humanidade (C.Hum). Ao tomar um ou mais “choques de humanidade” (C.Hums), o alcoólatra poderá confrontar sua natureza humana com sua profunda crença em alcançar um estado ideal de incorporação do divino, usando os efeitos do álcool. Ele poderá compreender, gradualmente, que sua humanidade não é tão inteiramente desprovida de recursos como à primeira vista lhe parecia; nem que ela é a fonte de todos os seus padecimentos. Logo, o “choque de humanidade” (C.Hum) objetiva constantemente desacreditar o alcoólatra da possibilidade de se tornar um deus, se desumanizando por meio do uso psico-religioso que faz dos efeitos psicossomáticos do álcool. O alcoólatra, então, talvez passe a perceber através do sofrimento que acompanha a desilusão, que a saída para a sua vida não é mais uma desesperada busca, que fracassou, de tentar escapar do humano para ser deus. O ideal pode passar a ser entendido como algo impossível de ser atingido. Não tem saída, ele é humano! Para esse fim, os “choques de humanidade” (C.Hums), tendem a apontar constantemente para o “idealcoolista” seus traços característicos de humano, inicialmente a partir da realidade concreta da existência de seu próprio corpo (aparência, altura, peso, cor da pele, vestuário, etc) e concomitantemente das perdas que seu ‘idealcoolismo’ produziu nas mais diferentes circunstâncias de sua vida: possíveis doenças contraídas, perdas de dinheiro e amorosas, perdas nas relações familiares e profissionais, etc. Convém, igualmente, lembrar o idealcoolista de sua mortalidade e os descuidos que faz consigo mesmo. Os “choques de humanidade” (C.Hums), tentam gerar uma desilusão da crença e da fé psicótica do indivíduo na existência do ideal.
Duas ressalvas para a obtenção de êxitos no tratamento: 1ª. Para que possa apresentar condições de êxitos na direção da re-humanização do alcoólatra é preciso que a religião degradada “idealcoólica” não esteja tão fixada e ainda que seu masoquismo – mortífero e moral – não seja tão intenso. 2ª Ao mesmo tempo, faz-se imprescindível, que o “idealcoolista” no início do tratamento tenha mínimas condições egóicas para deixar o refúgio das alcoolizações. Essas são condições indispensáveis. Sem elas não haverá possibilidade de dar início e continuidade ao tratamento.
Mostra-se importante, também, que o indivíduo nessas condições realize tratamentos psicológicos e alternativamente ingresse em AA, faça psicanálise e, através de uso sucessivo do ‘chum’, possa diminuir sua organização patológica de estreiteza mental, seu masoquismo mortífero e seus anseios psicorreligiosos de tornar-se um deus, negando-se humano. Paralelamente ao trabalho psicanalítico pode ser conveniente lançar-se mão de um suplemento medicamentoso criterioso e supervisionado atentamente, com uso de antidepressivos e ansiolíticos, procurando-se evitar medicamentos com tarja preta, em especial os benzodiazepínicos.
Luciana: sugestão diferenciada de tratamento conforme o grau de dependência ao álcool e outras drogas?
Xavier: Claro está que cada indivíduo alcoólatra ou drogado, em função de sua singularidade apresenta possibilidades diferenciadas seja quanto ao estado e a intensidade de sua adicção. De qualquer maneira o tratamento deve ser individualizado caso a caso.
Luciana: Como veem o trabalho do Alcoólicos Anônimos?
Xavier: Alcoólicos Anônimos teve seu início em 1935, está presente em 52 nações e possui cerca de 10 mil grupos de atendimento. Apenas por essas referências nota-se que é possível considerar sua relevância no campo do alcoolismo.
No capítulo 12 do livro, Idealcoolismo, que Dr.Emir Tomazelli e eu fizemos após mais de 10 anos de estudos, de trabalho clínico e de pesquisa de campo, examinamos em detalhes a conexão entre o AA, a psicanálise e o idealcoolismo como uma prática religiosa degradada.
Assim, pudemos enxergar que o sentido religioso do ‘idealcoolismo’ podia ser, às avessas, comprovado empiricamente pelo programa de AA – Alcoólicos Anônimos consubstanciado nos doze passos que conclamam seus membros à entrega de suas vidas a um Deus Pai – Poder Superior e à uma reeducação moral de seus membros em relação ao alcoolismo.
Acreditamos que a dificuldade central do programa de AA está contida exatamente nestas questões, que representam o conflito humanização versus inumanização, sendo a principal responsável pela evasão de seus membros.
Estudando à luz da psicanálise, observamos que o programa de AA está permeado de “choques de humanidade”, iniciando pelo maior de todos, expresso no primeiro “Passo”que propõe que somente há uma saída para o alcoólatra à medida que este comece por admitir sua “impotência perante o álcool” e a “perda do domínio de sua vida”. Em outras palavras, que aceite sua condição humana limitada e mortal que, apesar disso, mas sem o álcool, pode ser boa.
O programa promove um processo de vigorosa reumanização do alcoólatra, primeiro na condição de abstinência do estado ‘idealcoolista’ para que ele, em seguida, conquiste um estado mais humanizado com bem estar sem o álcool. Ou seja, o indivíduo faz a substituição de suas práticas religiosas alcoólatras degradadas e inumanizadas por práticas religiosas de humanismo.
Fizemos uma sucinta descrição de um bom funcionamento do programa de AA, mas afirmamos que, em muitas situações, o método parece não funcionar tão bem como poderia, em virtude de seu acentuado empirismo e das enormes dificuldades no tratamento do ‘idealcoolismo’.
Embora sem estatísticas comprobatórias, podemos afirmar que o número de alcoólatras que chega ao AA é significativamente maior que o número dos que conseguem tornar-se alcoólicos/ex-’idealcoolistas’ e ex-alcoólatras. Ainda assim, pensamos tratar-se da instituição que acumula maiores êxitos na recuperação de alcoólatras.
1 Antonio Alves Xavier, é psicanalista Membro do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (ISS), Bacharel Em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Diretor do Centro de Apoio e Atendimento Psicanalítico (CAP) de São Paulo e do Grupo de Estudos do Idealcoolismo (GEIA)
2 Emir Tomazelli, é psicanalista formado pelo Instituto Sedes Sapientiae(ISS), Membro do Departamento e professor do curso de Formação em Psicanálise do ISS. Doutor em Psicologia pela USP, Diretor do Centro de Apoio e Atendimento Psicanalítico (CAP) de São Paulo e do Grupo de Estudos do Idealcoolismo (GEIA)
3 Idealcoolismo, Coleção Clínica Psicanalítica, Ed. Casa do Psicólogo