ou O último dia do outono de 2013
1964.
Eu tinha seis anos.
Imagine, ser alfabetizada em plena ditadura.
Que loucura!
2013.
Eu, agora, tenho 54 anos.
Saio na rua, caminhando e cantando e seguindo as canções. Lendo cartazes, muitos cartazes. E, principalmente, respirando a almejada democracia.
o povo unido é gente pra c…!
É mesmo. É muita gente. Éramos 100 mil na Manifestação de quinta-feira, dia 20 de junho de 2013.Avenida Paulista fechada de cabo a rabo.A Manifestação era, basicamente, para celebrar a redução do aumento dos 20 centavos nas tarifas de ônibus, trem e metrô na cidade de São Paulo, redução conseguida a duras penas e anunciada no dia anterior.
Havia outras bandeiras, muitas outras. As bandeiras das demandas do povo, como extinção da PEC 37, a chamada PEC da Impunidade*; cartazes e gritos contra a Copa das Confederações e contra a Copa do Mundo; contra a redução da maioridade penal; contra a corrupção; demonstrando indignidade em relação à votação em prol da “cura gay” por psicólogos; cartazes e mais cartazes pedindo melhorias na Saúde, na Educação, na Moradia, na Segurança, no Transporte Público…
país desenvolvido não é aquele em que pobre anda de carro
é onde rico anda de transporte público
E havia as bandeiras de partidos pequenos, como o PSTU, o PSOL, a facção jovem do PSOL, o JUNTOS…Os simpatizantes desses partidos caminhavam, juntos, em direção à Vila Mariana, do lado direito da Avenida Paulista.Do lado esquerdo, manifestantes indignados com os representantes dos pequenos partidos. Gritos, gestos, indignação:
o povo unido não precisa de partido!
Fiquei muito impressionada com a ira manifestada contra os manifestantes que carregavam as bandeiras de seus partidos.Pessoas de todas as idade, prevalecendo os jovens, indignados com o grupo dos “embandeirados”:
o-p-o-r-t-u-n-i-s-t-a-s!
Fiquei estarrecida e temerosa com o clima de adversidade que pairava sobre o ar.
O tempo todo, me perguntava qual era o problema naquelas pessoas quererem propagar suas preferências partidárias.Muitos daqueles partidos e movimentos ajudaram a tecer as manifestações, os movimentos e os acordos, que agora ganhavam cada vez mais corpo, representatividade e voz. E temi pela democracia duramente conquistada.
este governo não me representa
Fui caminhando e me perguntando por que tanta raiva, tanta hostilidade diante dos pequenos partidos. Mas, também, considerei o pouco exercício do diálogo, da cidadania, da cultura política, da vivência e experiência do que poderia chamar de uma alfabetização política, ao longo dessas últimas décadas.
Oh! E, imediatamente me reportei ao meu BE-A-BÁ em plenos anos 1964… Que loucura!
Tive tanta esperança que o Fernando Henrique – um homem culto, “estudado” – que foi professor da minha mãe e tia e disponibilizava a sua biblioteca pessoal para os alunos frequentarem, retirarem livros… Ah! este sim, este homem valoriza a Educação, vai reverter a decadência na qual a Escola Pública se encontra!, pensava… acalentava eu… E toda a minha esperança retornou com Lula no poder. Ah! Exatamente por não ter estudado, não ter tido oportunidades quando criança e jovem, este sim, vai dar ao povo tudo o que ele não teve, vai retribuir os votos com o que o povo brasileiro necessita. Este, sim! E o que as ruas estão mostrando?
este governo não me representa
Nem o futebol, que já foi inúmeras vezes apontado como o ópio da nação, está adiantando para distrair e dispersar as multidões:
Copa o c…
queremos transporte, saúde e trabalho!
queremos mais pão e menos circo!
ei! Ronaldo! paga o meu convênio!
queremos hospitais padrão FIFA!
FIFA go home!
Ninguém nos perguntou se queríamos sediar a Copa do Mundo. Se queríamos investir a quantia de 28 bilhões, que tudo indica que chegará a 33 bilhões, em estádios e outras obras faraônicas, com tantas prioridades em nossas políticas públicas, como Educação, Saúde, Moradia, Transporte Público, Geração de Empregos, Segurança, Saneamento Básico…
vem pra rua vem
contra o governo!
Afinal, um governo que dá margem para um preconceituoso assumido e manifesto presidenciar uma Comissão de Direitos Humanos e permitir que se aprovasse, “na calada da noite”, a “cura gay” por psicólogos… Só pode ser mesmo um ato de provocação, pensei. Um ato para nos humilhar e nos chamar de impotentes e sem voz ou querer.
Felicianus
anus feliz
atchim! saúde!
está doente? não! tô gay!
existe cura para fanatismo religioso?
E as pessoas caminhavam e convocavam as outras pessoas que assistiam, nos arranha-céus, à multidão paulistana, em marcha.Em muitos escritórios, luzes piscavam em sintonia e aprovação. Havia prédios com bandeiras do Brasil nas janelas… Com luzes verdes piscantes. Pais com filhos nos ombros, pessoas idosas, cadeirantes. E a multidão de jovens.
desculpe o transtorno estamos mudando o Brasil
Na hora de irmos embora, meu filho, o amigo dele e eu vimos colada do lado de fora da Estação Brigadeiro do metrô a pérola poética que resumiu nossa aventura pela Avenida Paulista, naquela última noite do outono de 2013, o mantra que não quer calar:
cidade muda
não muda
* Proposta de Emenda Constitucional a ser votada pelo Congresso Nacional: Câmara dos Deputados e Senado Federal.