Psicanálise e Arte - entrevista
05/08/13 10:08As artes ocuparam um lugar privilegiado na construção da psicanálise. Freud, que sempre se interessou pelas artes plásticas e pela literatura, fundamentou teorias (ou ilustrou-as) e inovou conceitos, no corpo do pensamento psicanalítico, partir de sua formação clássica. Assim plantou nas novas gerações de analistas um interesse pelas artes que o transcendeu em muito. O que levou muitos analistas a se dedicarem ao estudo conceitual ou acadêmico das relações entre arte e psicanálise. As contribuições das artes, hoje, para o pensamento analítico são inesgotáveis, percorrem um amplo campo onde a questão do método, do objeto e da criação de sentido se tornam fundamentais. Para conversarmos sobre psicanálise e arte, convidei Silvana Rea*, psicanalista que recentemente publicou o livro, Pelos poros do mundo: uma leitura psicanalítica da poética de Flávia Ribeiro, pela Edusp/Fapesp.
Luciana: Como se interessou por artes plásticas?
Silvana: Venho de uma família que tem relativo trânsito com este universo. Mas acho que o principal motivo de meu interesse é afetivo, ligado às lembranças que tenho de meu pai, que gostava de pintar em seus momentos de descanso. Todos nós convivíamos com o cheiro da tinta e com sua presença absorvida e concentrada diante da tela ou do papel. Para um amador, ele era bastante talentoso.
Acho fascinante algo surgir do que inicialmente parecia nada ser, uma forma se configurar a partir de uma latência ou de uma possibilidade. As artes plásticas trazem isso muito vivamente. Assim como minha primeira escolha profissional, cinema, que remete às questões de visibilidade. E a maneira como entendo a psicanálise também se relaciona a tornar visível algo que estava ali, mas que era invisível até então, para usar uma ideia do filósofo Merleau-Ponty. Então, acho que pensar em termos de forma, é algo que sempre me acompanhou.
Luciana: Como surgiu a ideia do livro?
Silvana: Bem, esse livro é a minha tese de Doutorado, que defendi no Instituto de Psicologia da USP.
Ele brotou da minha dissertação de Mestrado, na qual eu me dedico ao processo criativo de três artistas plásticos brasileiros, de gerações diferentes e com linguagens plásticas diferentes: Renina Katz, Carlos Fajardo e Flávia Ribeiro. Nessa ocasião, centrei-me em seus processos de construção de obras e em suas relações com a psicanálise.
Quando concluí o Mestrado, outra questão surgiu: até que ponto a psicanálise serviria à leitura em profundidade da poética de um único artista, sem a preocupação direta com o processo de criação de uma obra específica?
Quis, então, me dedicar a uma pesquisa que abrangesse a obra de um artista como um todo e foi o início de tudo. Terminado o Doutorado, a Edusp se interessou por publicá-lo, o que para mim foi uma honra.
Luciana: Porque escolheu a artista Flávia Ribeiro?
Silvana: Eu conhecia o trabalho da Flávia de exposições e a admirava muito. Por isso ela foi uma das artistas que estudei no Mestrado. Com a proposta do Doutorado, a obra de Flávia novamente me interessou, pois ao pensar em tecer uma leitura poética da obra de um artista único, tomei como desafio encontrar um fio condutor para seus trabalhos executados no decorrer de vinte anos. São trabalhos elaborados com diferentes materiais, dimensões extremamente variadas e linguagens plásticas que vão da pintura, desenho, gravura à escultura. Isso, com certeza, despertou meu interesse. Porque aparentemente, a obra de Flávia é muito diversificada, dispare até, e o fio condutor com certeza está em sua coerência poética. É o que eu espero ter conseguido mostrar em Pelos poros do mundo.
Luciana: Como foi a experiência de acompanhar a artista?
Silvana: Foi muito rica. Tive a oportunidade de conviver com Flávia em seu ateliê por muito tempo. Contei com a generosidade dela, de abrir esse espaço para mim e vivi uma experiência única. Uma experiência de pesquisa, mas que trouxe uma aproximação muito grande entre nós. Tornamo-nos amigas. Eu pude entender melhor o seu trabalho e criei certa intimidade com as artes plásticas. E acho que ela descobriu uma maneira de ser psicanalista que contrariava todas as pré- concepções e preconceitos sobre psicanálise que muitas vezes os artistas têm.
Luciana: Quais as relações entre arte e psicanálise?
Silvana: Da maneira como eu entendo e pratico psicanálise, elas aproximam-se muito e de muitas maneiras. Mas vou me restringir ao que apresentei em Pelos poros do mundo.
Nesse livro, desenvolvi a ideia de que ao efetuar a leitura da poética de Flávia, tratava-se de um trabalho de curadoria. E penso que da mesma maneira poderia ser entendido o trabalho no consultório.
Veja, um curador de arte tem como tarefa produzir conhecimentos novos sobre a arte e sobre os modos de pensá-la. Ele busca um diálogo singular com o artista e sua obra para construir novos sentidos. Para isso, o curador é o depositário do signo do artista, usando as palavras do Paulo Herkenhoff. A partir daí ele vai tecer um discurso próprio; um recorte que vai evidenciar certas questões que a obra suscita para a leitura e algumas possíveis respostas. Ele cria um espaço de reflexão sobre a obra, possibilitando percepções de um mundo que já está ali, mas que pode ser outro. Percepções daquilo que só era possibilidade de sentido, até então.
Entendo o trabalho clínico de forma semelhante. O analista, na sessão de análise, abre-se à experiência de ser habitado pelo outro, como diz o psicanalista Thomas Ogden. Ao oferecer uma abertura em si mesmo, o analista recebe e pensa os pensamentos do paciente juntamente com os seus e, da mesma maneira, ao oferecer o que pensou ao paciente, possibilita aberturas no mundo dele.
Quando efetuei a leitura do universo poético de Flávia, o fiz por meio de um recorte pessoal, do singular para o singular, que só foi possível porque ela confiou em mim como seu depositário, porque se criou um campo transferencial. Veja, todas as conversas que tive com a Flávia foram gravadas e transcritas. Você pode notar que no livro, organizo essas conversas em eixos que surgiram de minha leitura flutuante. Faço isso como na escuta psicanalítica, que, atenta à singularidade de cada paciente (ou a cada momento da análise do mesmo paciente), utiliza diferentes vértices psicanalíticos para tecer uma interpretação; os eixos de leitura que efetuo no livro adotam vértices psicanalíticos variados.
É nesse sentido que o trabalho do curador e o trabalho do psicanalista aproximam-se. Porque é tarefa da psicanálise construir um sentido para o que ainda não pode ser articulado, o que ainda é vir a ser. O analista também é um depositário do signo do seu paciente, a partir do qual produz com ele um conhecimento por meio da construção de uma leitura do que é do outro e que lhe foi confiado pelo outro, que nasce de um olhar aberto aos diferentes vértices teóricos, isento de uma grade interpretativa a priori – o que me parece fundamental para o exercício da psicanálise.
Luciana: O que é psicanálise implicada?
Silvana: Essa é uma maneira de trabalhar que aprendi com o meu orientador do Mestrado e do Doutorado, o João Augusto Frayze-Pereira. É uma maneira de trabalhar e de pensar que transforma o jeito da gente ser. Porque a psicanálise implicada na arte, compromete o leitor de maneira direta no trabalho de leitura. E não tem como alguém sair o mesmo da experiência.
Isso porque a psicanálise implicada, diferentemente dos exercícios de psicanálise aplicada, que usam a psicanálise como um molde ao qual o que é observado deve se conformar, utiliza o método psicanalítico para a leitura da obra. Ao fazer isso, ela insere o observador de modo encarnado no campo de observação, transformando seu inconsciente em instrumento de trabalho. Ela implica o leitor “psicanaliticamente” na experiência. E como uma obra nos interroga, ao solicitar uma leitura, qualquer leitura sempre vai revelar os efeitos dessa obra sobre seu leitor. Não tem como ser diferente: toda interpretação põe em evidência tanto a obra quanto seu leitor.
Foi assim que eu trabalhei minha leitura da poética da Flávia. Precisa certa dose de coragem para se trabalhar dessa maneira. Mas para mim, não há possibilidade da psicanálise sem ser implicada, seja no trabalho com arte, seja com os pacientes no consultório. Trata-se de experiências onde todos os envolvidos saem transformados.
Luciana: De onde surgiu o título Pelos poros do mundo?
Silvana: Surgiu do próprio trabalho. Da pesquisa como um habitar-se um ao outro, através dos poros de cada uma: artista e psicanalista. E dos elementos da poética de Flávia: a gravura entendida de forma ampliada, como o registro do contato entre corpos, os trabalhos feitos em parcerias com outros artistas, sua obra posta no mundo por meio da porosidade dessas relações… Enfim, para saber mesmo, só lendo!
*Silvana Rea é Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise, graduada em cinema e psicologia. Mestre e Doutora em Psicologia Social pela USP, publicou Transformatividade: uma aproximação entre psicanálise e artes plásticas, pela Anablume/Fapesp e Pelos poros do mundo: uma leitura psicanalítica da poética de Flávia Ribeiro, pela Edusp/Fapesp.