Ku - de J.B. de Souza Freitas
19/07/13 09:07Por uma tarde sombria,/ na aldeia de Kampanu,/ um pequeno ser nascia,/ com o lindo nome de Ku.
Bem mais ou menos assim em tempos aqueles de ginásio principiava poeminha que com mafiosa precaução circulava entre nós, novéis ginasianos, iniciantes nos mistérios e meandros dos signos e palavras incumbidos de sinalizar e conduzir o intrincado transitar de um ser falante no mundo que o rodeia.
O ponto nevrálgico daquela nossa sigilosa operação centrava-se naturalmente no Ku. Camuflado por inusitada consoante, o monossílabo ganhava certa graça e exotismo e mantinha o som e a fúria do proibido similar grafado com C, considerado palavrão de arrepiar e requerente mesmo de imediata esfregação da boca de qualquer pronunciante com escova preferencialmente de aço.
Tirante tal secreta peça versificada, cujo acesso era exclusividade do alunado masculino, episódio outro envolvendo o proscrito monossílabo já ocorrera. A céu aberto (ao alcance portanto dos olhos e ouvidos da ala feminina) e (pode-se dizer) de caráter além-fronteiras.
Pela terceira ou quarta aula de francês, no fundão da classe, o repetente Edival (bom em letras, fraco em números) desafiou pra ato de valentia o valoroso Vieira: indagar no idioma de Voltaire e Brigitte Bardot o significado da palavra pescoço (é, é, pescoço, sussurrava Edival, a apontar a própria goela).
Certificado pelo veterano colega que se tratava de teste pra avaliar o nível de conhecimento daquela nova e jovem professora, levantou Vieira em momento azado a mão e enunciou em bom e claro som a relevante questão.
Mademoiselle Yvonne (portava a mestra nome que evocava a França e letra de tango) pôs-se roxa-rabanete (que tempos!) –, mas firme se manteve.
Foi até o quadro negro e escreveu: COU. Voltou-se para o inquisidor Vieira e esclareceu: pescoço em francês se escreve assim; ao ser pronunciado, o O é omitido. E o senhor faça o favor de se retirar da sala.
Força por oportuno registrar: em meados aqueles de 1950, Cu era um negócio que os comportados (e raros) dicionários dificilmente davam, a não ser sob a forma insípida e até decepcionante de símbolo do cobre, do latim cuprum.
Pra valer, tal como hoje se escancara, nem pensar. Orifício na extremidade inferior do intestino grosso. Bunda, rabo, traseiro. Conjunto das nádegas e do ânus.
Curiosos (a propósito) são os caminhos da semântica: nessa última acepção, o termo é de corrente e familiar uso em plagas lusitanas.
Em igualmente outrora ocasião, falecido tio meu ao em Lisboa chegar com a família (ele, mulher e três filhos) estupefato (como outrora acontecia) ficou ante o palavrear do motorista do táxi que os levaria ao hotel.
Fosse digamos em Congonhas, a indicação pra que primo Zezo (o caçula, em seus incompletos dez anos) se acomodasse um tanto espremidamente no meio do banco da frente seria (em nossos sempre carinhosos diminutivos) talvez assim: “O menininho, que tem a bundinha mais pequeninha, vai ficar sentadinho aqui”. Roupa outra, no entanto, vestiu aquele comandar em luso e destampado vernáculo: “Ó, puto, tu que tens o cu mais estreito senta-te aqui”.
Certo que brasilicamente o substantivo masculino (composto tão só pela segunda consoante e pela última vogal) em questão ora circula com mais liberdade e desenvoltura.
Tomar no próprio, tirar da seringa o próprio e ficar com o próprio na mão já não constituem motivos de ohs! de incredulidade e puro horror.
Quem se dispuser a percorrer o Dicionário do palavrão e termos afins, de Mário Souto Maior, espantar-se-á (valha a mesóclise) com a quantidade de derivações ali registradas. A partir de anel de couro, argola, bozó, canal dois, ceguinho, dentrol, passa-se por fiantã, fiofó, loló, lordo, quo-vadis e chega-se a padaria, retaguarda, rigoleto, tarraqueta, xandongas, zebesquefe e zorobó.
Quanto ao personagem que nomeia o presente texto, pesa-nos confessar que nos fugiu da memória o transcorrer exato de sua movimentada e trocadilhesca vida.
O que com certeza lembramos foi de seu trágico fim: em batalha no qual envolvido, certeiro tiro de poderoso rifle mortalmente atinge o olho do Ku.
Se meu sobrenome é Felicissimo e meu próximo filho chamar-se Ku ele será conhecido com Ku Felicissimo, um verdadeiro mantra…