Ainda sobre a inveja
17/05/13 12:44A Internauta Alessandra Valentin faz um comentário belo e perspicaz sobre o post inveja e sobre os diferentes destinos que podemos dar a esse sentimento tão frequente e tão negado. No caso ela usa a escrita e escreve uma história como forma de se apropriar de algo bom do outro sem causar nenhuma destruição:
Alessandra: Gostaria de ter escrito um comentário no seu post sobre Inveja, mas achei que ia ficar muito longo. É que sou uma invejosa e queria te contar minha experiência, que parece ser um pouco diferente da que você retratou.
Quando criança eu tinha inveja das minhas amigas, cujos pais me pareciam mais tranquilos do que o meu, que era violento e exibicionista. Quando entrei na adolescência deixei isso para trás e creio nunca mais ter invejado ninguém, exceto pelas lindas experiências de infância que, de vez em quando, alguém me conta.
Assim, mesmo que eu não prejudique ninguém (não vejo como poderia danificar boas memórias de infância de alguém) eu percebo que, justamente como você disse, há sofrimento para mim – na hora fico encantada e silenciosa ouvindo a estória, mas depois sinto auto piedade, inveja e raiva pela minha falta de sorte.
Decidi escrever essas estórias e descobri que isso me causa grande alívio. A conclusão é que acho que podemos fazer mil coisas com os sentimentos, mesmo os negativos, coisas produtivas e talvez belas. Espero que goste dessa que foi minha primeira estória, baseada em fatos reais.
Sexta-feira de chuva
Natalia era uma garotinha muito loura e muito curiosa que gostava de ouvir a história de vida de sua mãe e pedia que repetisse mais uma, mais uma, mais uma vez.
O pai da Dra. Angela era mascate, vendedor ambulante de tecidos no interior do Rio de Janeiro. Toda segunda-feira ele saía de casa puxando sua carrocinha cuja pilha de tecidos coloridos ele tinha renovado com suas compras no sábado.
Angela e seus muitos irmãos e irmãs sempre pulavam da cama mais cedo na segunda-feira para ver o pai tomando café: café com leite e bolo de milho. A mãe também sentava, cruzava as mãos no colo e ficava suspirando e olhando para ele que catava migalhinhas de bolo, imaginárias e reais.
Depois do café ele saía pelo portão e o fechava atrás de si. Olhava pra trás e acenava com um sorriso resignado. Então ele se arreava à carrocinha e saía puxando. Angela era sempre a última a deixar o portão, ficava olhando aquele homenzinho diminuir, diminuir até desaparecer na lonjura de pó.
Toda sexta-feira o pai voltava. Quanto mais coloridas suas pilhas de tecidos, mais calado o pai, o peso do fracasso nas vendas fazia seus ombros, caídos, e o peito, encovado. Os filhos se revezavam em contar-lhe os causos da semana, piadas, fofocas da vizinhança. As filhas lhes traziam os chinelos, lhe penteavam os cabelos, outra lhe fazia massagem nos ombros e uma outra lhe trazia uma bacia de escalda pés com alecrim cujos vapores cheirosos o faziam fechar os olhos e respirar profundamente.
A mãe contava as artes das crianças e as respectivas reprimendas e castigos. O pai ouvia com uma boca serena.
Mas havia sexta-feiras que eram diferentes. Quando o barulho da carroça era serelepe no calçamento de pedra era porque estava vazia. O pai aumentava seu passinho conforme se aproximava e todos em casa se alvoroçavam – todos sabiam. Era sempre a mesma surpresa e ninguém queria mudar uma vírgula de seu roteiro:
O pai abria a porta com um só impulso elegante, o braço impelia a madeira tosca e cheia de farpas, o braço se alongava no movimento se transformando em braços abertos e levantados que, ou era um abraço ou era um gesto de vitória olímpica. Ninguém sabia, nem tampouco queria descobrir.
O pai, nessas ocasiões, carregava um pacotinho pardo amarrado com barbante cru. No cerimonial inventado pelo pai, ele subia na cadeira, a mãe tirava a toalha da mesa rapidamente feito uma assistente de mágico – se vestisse um corpete de lantejoulas não seria mais convincente.
No próximo passo o pai subia à mesa, alto, altíssimo ele era. As crianças batiam palmas e riam, riam, de olhos e bocas bem abertos, esperando pela mesma renovada surpresa.
O pai abria o pacote e fazia chover. Chover balas. Entre palhaço, mestre de cerimônias e mágico ele era o homem que fazia chover balas.
Toda vez que a Dra. Angela contava essa história dizia que nunca mais em sua vida de sucesso material, ela provou tamanho êxtase de felicidade. Ela dizia isso entre risos e lágrimas. Natália também gostava de contar a mesma história para sua filhinha.
Muito boa história, essa menina escreve lindamente. Também tenho a escrita como válvula de escape. Cada um sabe como exorcizar os seus demônios… quando é de forma bela, melhor.