Clínica extensa no Ateliê Acaia - entrevista
22/04/13 09:52O Ateliê Acaia nasceu há mais de 12 anos da inquietude de uma artista plástica. Começou atendendo a oito crianças, uma vez por semana. Hoje oferece, diariamente, oficinas de criação para mais de 200 crianças e jovens da região do Ceasa. A psicanalista, Ana Cristina Cintra Camargo, percebeu haver nessa experiência a oportunidade para um trabalho analítico pioneiro e de qualidade. Nos estudos do psicanalista, Fabio Herrmann, encontrou os recursos necessários para desenvolver uma forma de clínica extensa, pois a realidade exige a extensão do método psicanalítico a novos campos, não necessariamente individuais. Falamos de novas formas de trabalho psicanalítico que recuperem o interesse freudiano pelo mundo.
Luciana: Como foi que o Ateliê Acaia nasceu?
Ana Cristina: Nas dependências do Ateliê de trabalho da artista plástica e escultora, Elisa Bracher, que se mudara no fim dos anos 90 para um galpão na Vila Leopoldina. Acaia, que significa útero em tupi, só foi formalizado como Instituição em 2001. Éramos, e ainda hoje é assim para muitos, a Marcê – apelido da Marcenaria, primeira atividade de aproximação com as crianças do entorno do Ceasa.
Podemos chamar de marco inaugural do Acaia, o dia em que Elisa descia com os filhos a rua do seu Ateliê e parou no canteiro central do Ceasa para ver uma roda de capoeira. Com sua aproximação e dos meninos, a roda se desfez. Duro explicar para um menino pequeno distâncias tão grandes.
Luciana: de que forma você se associou a esse trabalho?
Ana Cristina: Em 98, fazíamos juntas a adaptação de nossos filhos na escola e minha filha ficou próxima do filho de Elisa que muitas vezes a levava depois da escola para que as crianças brincassem juntas em seu Ateliê. Nos finais de tarde em que ia buscá-la, conversávamos sobre educação, crianças, cidade, pobreza de trocas culturais. No final do semestre, assim, “meio me convidando”, já reservara uma tarde da semana para estar ali.
Acho que foi muito importante a gestação do Acaia sem pressa de se tornar um projeto.
Luciana: Quais as dificuldades mais gritantes?
Ana Cristina: Segurar em si e na equipe as ansiedades referentes ao tamanho do trabalho que construímos um pouco para agora e muito para outras gerações.
Outro ponto muito difícil é dar-se conta de uma solidão na tarefa. Estar no lugar ENTRE uma população muito pouco acolhida emocionalmente, bastante desorganizada, um poder público distante de oferecer ferramentas e equipamentos que eles possam acessar e um empresariado pouco afeito a questões sociais.
Muito do tempo da coordenação é dispensado nesta interlocução.
Luciana: E a clínica extensa, o que é isso?
Ana Cristina: Como você disse na introdução da entrevista, houve uma redução do uso do instrumental psicanalítico à prática de consultório. É fato que estamos nós, os psicanalistas, pouco preparados para atuarmos em situações menos protegidas. É como se saíssemos a campo com a essência dos dispositivos do método psicanalítico: atenção flutuante e escuta descentrada, não direcionada para o que salta aos olhos, mas para o que está a margem e a possibilidade de interpretação não apenas de indivíduos, mas do coletivo, de contextos socioculturais.
Acho que o Fabio Herrmann, retomando a amplitude de vocação da psicanálise proposta por Freud, nos deu impulso e coragem para irmos atrás de uma clínica pulsante, onde ela se fizer necessária.
Aprender a trabalhar dentro de uma equipe multidisciplinar sem valoração dos vários saberes, inclusive o da população atendida que é quem mais sabe do que sofre.
Luciana: Como a clinica extensa se realiza no Acaia?
Ana Cristina: Nos primeiros anos, meu contato era mais diretamente com as crianças e adolescentes. Os “atendimentos” nasciam em meio a atividades de cerâmica, jogos de bola ou ping-pong, em horas lixando pedaços de madeira que viravam caixas de engraxate. Eram conversas sobre a vida, sobre as brigas, namoros, dificuldades na escola ou com as famílias. É claro como as crianças percebem que estão sendo escutadas de um jeito diferente, que aquele papo tomou um rumo não previsto. Em certo momento passei a propor grupos de meninas e de meninos separados, pois sentia que havia assuntos que pediam privacidade. No atendimento das famílias, bordar em meio às mulheres era a forma encontrada para saber das crianças, dos sentimentos delas em relação aos recorrentes episódios de violência, delas, para com elas, para saber dos mandos do tráfico de drogas, das hierarquias que se estabeleciam nas relações.
Há anos, entretanto, estou na coordenação e este trabalho mais direto é feito por uma colega psicanalista. Acho que o principal trabalho atual diante do crescimento do número de pessoas atendidas e da grande equipe envolvida no acontecer diário do Acaia, é não perder a atenção para as singularidades, não nos desviar da missão de acolher as crianças e construir um ambiente vital. É um risco do trabalho quando ele dá certo, que você vá desconsiderando crianças mais trabalhosas, que dificultam o êxito de uma proposta e lembrar que é por cada um que se está ali e que nos cabe construir um jeito de estar com eles.
O que sempre me encantou no Acaia foi que não há outro critério que não o de termos vaga para receber esta ou aquela criança.
Luciana: Quais conselhos você daria para quem está iniciando um projeto social?
Ana Cristina: Cada espaço tem sua especificidade, sua inserção no bairro, sua gente e merece ser conhecido cuidadosamente antes de se propor algo. Ali no Acaia, a marcenaria ter sido o instrumento de aproximação favoreceu um encontro feliz– havia na madeira afinidade entre Elisa e suas esculturas e os meninos que moravam em barracos de madeira e cujas famílias trabalhavam em meio a pallets e construção de caixas de frutas e verduras. O fazer também é um facilitador. Trabalhando junto há maior chance de conhecimento de potencialidades recíprocas e não apenas de dificuldades parciais.
Luciana: Como será a sua participação no VII Encontro do Cetec?
Ana Cristina: Estarei em uma mesa falando do trabalho do Acaia junto com a Elisa e com Silvana Rea. O Tema do VII Encontro é Psicanálise com Arte, então estarei muito bem acompanhada. O Acaia nasceu em meio às esculturas e Silvana, que ainda não conheço tem bastante proximidade com o fazer artístico tendo lançado recentemente um livro sobre o trabalho da artista plástica Flávia Ribeiro.
Simpatizo muito com essas idéias de tal forma que escrevi há 13 anos atrás uma tese de doutoramento na PUC-SP um trabalho feito com adolescentes meninas na Prefeitura de Santos….no sentido de levar um pouco da psicanálise a outros espaços. Parabéns!