Civilização e horror
11/04/13 09:57Somos seres civilizados, quase ninguém duvida dessa simples afirmação. Nas mais diversas culturas, encontramos uma base comum: o poder do grupo sobre os indivíduos, que abrem mão de seu poder pessoal em prol da convivência com seus semelhantes. A Lei recai sobre todos nós. Medo de autoridade e culpa se confundem com a civilização. O preço a pagar por viver em sociedade é reprimir a sexualidade e a agressão. Portanto, sempre há uma dose de mal-estar na cultura, pois nas mais diferentes formas de organização humana encontramos doses variadas desse mal-estar. É o tributo que pagamos pela humanidade.
Há situações extremas, não apenas na guerra, mas, principalmente, sob seu domínio, em que nos perguntamos para onde foi a humanidade. O império da desrazão nos horroriza, a brutalidade contida em certos atos individuais ou em ações que ocorrem em nome do Estado nos levam a pensar no fracasso da civilização. Os regimes políticos tiranos, as ditaduras, o nazismo, o totalitarismo revelam uma inversão no que acreditamos estar na base da civilização: o poder de um indivíduo sobre o grupo, a sociedade submetida e apavorada por um ditador. Não importa se ele é chamado de rei, xamã, Papa ou presidente. Se exercer seu poder de forma a esmagar o grupo, se ele for a lei e não aquele que obedece à ela, o horror se torna império.
Quando isso acontece há perda de sentido do mundo e de sentido da linguagem, os significados se turvam e as palavras perdem o uso, mas não há regressão para um mundo selvagem. Não é possível que o homem funcione como numa organização de primatas. A tecnologia e as ciências, o conhecimento, produtos da cultura se colocam a serviço da destruição da civilização – esse é um paradoxo difícil de tolerar.
É algo que o Adorno aborda: como a razão funciona tão bem para produzir horrores, como a civilização pode produzir a barbárie. Nesse sentido, ele não apela a um recurso do seu texto — o da “desrazão”. Não: é a própria razão que comete milagres e crimes.
Penso que é fundamental percebê-lo. Sem isso não saberemos julgar o racional.
No seu texto, outro ponto me incomoda, que é a aparente fundamentação freudiana. Porque você coloca como universal esse “mal-estar” que ele aponta, como universal essa repressão da sexualidade e etc. Mas, antropologicamente, isso é real?
É preciso saber o que é da nossa sociedade, mas não do necessário à humanidade.
O mal-estar é universal, sim. Palavra de antropólogo.
Há alguns antropólogos, como Pierre Clastres, que dizem que este mal-estar é terrivelmente pior sob o Estado. Mas desse mal não podemos nos livrar, o “mau encontro” com o poder na forma Estado é irreversível.
Obrigada pela informacao, vinda de um antropólogo é mais confiável. Para Freud o mal estar é universal…um preço que se paga pela cultura! na sociedade ocidental (Estado) parece mais alto ainda!!!
Ditadura e repressão nunca foram benéficas para nada, a não ser para aqueles que chocados com a alegria de viver e invejosos do brilhantismo de algumas pessoas, querem reprimi-las até que o efeito das atitudes destas pessoas especiais sobre o grupo maior seja nulo, ou seja, ditadura e repressão transformam tudo em mediocridade, irracionalidade, estupidez e hipocrisia. Ambas podem destruir uma nação só para agradar os medíocres.
Belo comentário!! Esses momentos de exceção à Lei de fato tornam as palavras tão insuficientes! O Projeto Clínicas do Testemunho citado abaixo vem justamente reparar esse ponto, recuperado a fala, compartilhando a experiência do horror, para tornar a exeção em parte da experiência e da História – para que não se repita!
eu havia programado postar esse comentário nessa data muito antes do recebimento do pedido de divulgar o evento, A clínica do testemunho, mas uma coisa combinou bem com a outra…é muito dificil falar do horror sem se contaminar, é dificil por em palavras um mundo desmundo…
A Luciana se esqueceu de que o homem É um primata… 😉
ME PEGOU!
o conceito civilizado anda muito aquém hoje em dia… fui buscar no dicionário e olha o que encontrei:segundo Sérgio Buarque de Holanda o conceito de pessoa moral se aplica apenas ao sujeito enquanto parte de uma coletividade. Portanto, moral coaduna com ética e respeito, e estes são a base de qualquer grupo CIVILIZADO. OU SEJA O GRUPO PODE SER CIVILIZADO, O HOMEM NÃO!
gostei desse seu cometário, gostei muito. Mas há grupos que nao se comportam assim, civilizadamente, pois nao respeitam a lei, se tornam a lei!
Ponto a ponderar, Luciana: o mal-estar pré-civilizacional era muito pior do que este que nos assola contemporaneamente…