Sublimação
09/04/13 09:46Internauta: Há cinco anos minha vida sofreu uma grande reviravolta e saí da zona de conforto, o que me lançou numa grande instabilidade emocional. Vivi momentos maravilhosos que ensejaram grandes angústias e sofrimento psicológico. Eu já participava de um blog em que apenas amigos contribuíam e liam. Escrevia resenhas de filmes, crônicas, críticas de todo gênero e vez ou outra um poeminha. Durante este período de grandes emoções percebi que meus despretensiosos textos e poesias impressionavam os leitores. Meus posts, que antes recebiam meia dúzia de comentários, passaram a ser aguardados diariamente e muito bem recebidos.
Com o fim daquela época, percebi que não sou mais capaz de escrever da mesma forma. Não consigo discernir se aquele sucesso se deveu ao estado emocional de angústia e ansiedade ou se foi o assunto interessante que cativou as pessoas. Existe uma relação entre o emocional e a “qualidade” incomum (dentre o repertório do autor) que alguém atinge com seus textos?
Luciana: Uma reviravolta emocional impõe tal quantidade de energia ao “sistema psíquico” que a escrita pode se tornar um meio de descarga. Claro que essa não é uma questão meramente hidráulica, há o talento, aptidão e esforço de cada um, mas é também uma questão hidráulica.
Freud denominou de sublimação o trabalho de transformar a energia psíquica a ser investida em estudo, ciência e arte. Quando estou triste ou ansiosa ou “louca” escrever me faz bem. Sublimamos as paixões (pathos) por meio das atividades criativas. Mas não acredito que a qualidade da obra esteja garantida pela sublimação. Nem todo o trabalho criativo é arte. Arte é outra coisa, depende da criatividade, mas a ultrapassa em muito. O mesmo vale para o cientista.
A questão para um escritor é o oficio. Escrever todos os dias. Lutar com as palavras. Amar as palavras, diariamente, absorver os textos e ser absorvido por eles, é que dirá se você tem condição de ser escritor. Isso ultrapassa a simples descarga, é trabalho humano, transformação da matéria bruta, cultura – tudo aquilo que nos difere das pedras.
Catar feijão
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
O poema Catar Feijão faz parte do livro A Educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, cuja primeira edição foi publicada em 1965.
Dica: A bruxa de Kepler, biografia de James A. Connor. Kepler foi um grande cientista e astrólogo do século XVII. Um gênio de sua época, perseguido pela igreja, sua mãe caiu nas garras da inquisição e, mesmo assim, não renunciou ao conhecimento que produziu nem a ser quem era.