Criança sofre? - entrevista
08/04/13 10:50Para conversarmos sobre os sofrimentos da infância, sobre a psicanálise de crianças e o brincar convidei a psicanalista Sandra Moreira de Souza Freitas, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, membro do Centro de Estudos da Teoria dos Campos e psicanalista de adultos e de crianças há mais de 30 anos.
Luciana: A que se deve seu interesse pela psicanálise de crianças?
Sandra: Cresci em uma casa com muitas crianças. Crianças bem sofredoras: eu também sofria muito. Sofrimento de alma. Duas dessas crianças eram meus sobrinhos, que haviam perdido o pai de forma violenta (assassinato).
Esse olhar, essa atenção para o sofrimento das crianças era um dom de minha mãe: com fina percepção e sensibilidade, ela tentava “acalmar”, contando histórias, desenhando.
O problema é que tantas outras coisas aconteciam e a solicitavam que, muitas vezes, ficávamos ao deus-dará, com nossos medos, ciúmes, invejas.
Luciana: Qual a especificidade dessa análise, no que difere da análise de adultos?
Sandra: Quando conheci os textos de Melanie Klein, a grande analista da vida emocional da criança, fiquei desnorteada, como se estivesse em vórtice e depois me encantei, já que desde sempre (acho) levei jeito para trabalhar com crianças. Nos atendimentos elas melhoravam; os supervisores elogiavam o meu trabalho.
Penso, hoje, que algo mais me levava à criança: a espontaneidade, a graça e o humor. A psicanálise na época era muito séria e chata.
Sempre me senti vivendo uma situação especial, de tão pura, quase “sagrada” (nunca me permiti usar esse termo, até descobrir que Winnicott o usa para falar desse trabalho), nesse encontro com a criança.
Luciana: Quais os sofrimentos das crianças? No que diferem daqueles do adulto?
Sandra: Criança sofre – e sofre muito. E quanto mais sofre, menos brinca. E quanto menos brinca, mais sofre.
Entre minhas lembranças dos pacientinhos do hospital do câncer, a que mais me impressionou naquele primeiro momento: estavam todos imóveis, em silêncio, olhando para uma parede absolutamente nua, como se ali existisse (como saber?) uma televisão.
Luciana: Como os pais e a família devem ser encarados diante desses sofrimentos?
Sandra: Conto um caso que não se deu comigo, mas com uma colega cujo trabalho com crianças muito pequenas e suas mães eu acompanho.
Atendeu essa analista uma mãe muito deprimida com um filhinho de seis meses. Nas primeiras sessões, ela chorava sem parar, e se dizia desesperada por não amar seu filho, não se relacionar com ele.
O acolhimento da analista, o olhar amoroso para dupla – e nem sabemos o que mais (tem hora que a tal de psicanálise parece mágica): eis essa mãe descobrindo que podia ler poemas para o filho. E ele, enternecido, punha-se à escuta da doce voz materna.
Luciana: Como vê a relação entre o brincar e a arte?
Sandra: Desde Freud existe essa aproximação entre o brincar da criança e o fazer do artista. Em Escritores criativos e devaneios (1908), Freud propõe que a brincadeira infantil vem a ser uma atividade afim à criação artística, e que a investigação dessa atividade nos daria a esperança de obter alguma informação sobre o fazer artístico e a psicanálise.
Luciana: “Psicanálise com Arte” é o tema do VII Encontro da Teoria dos Campos, do qual você é uma das organizadoras, e que será realizado em junho, no Instituto de Psicologia da USP, com apoio do Museu de Arte Contemporânea. Quais as relações entre a Arte e a Psicanálise?
Sandra: Conforme Fabio Herrmann: “A psicanálise é assim: sendo arte, é ciência; querendo imitar a ciência, vira rotina”.
Para muitos autores, todas as atividades humanas seriam poéticas, no sentido de fazer com que algo passe do não ser ao ser: produza uma presença. A psicanálise, o método de ruptura de campos, cria, desvela, traz à luz. “A poesia é tudo o que conduz ao ato.” (Falo mais de poesia, um assunto que tenho estudado, tendo em vista alguns projetos.)
Depois, na própria psicanálise, tivemos (de novo) Winnicott, que se refere a um espaço que chamou de transicional, no qual as experiências humanas da arte, do brincar, da cultura e da religião se dariam.
Levei certa vez um caso para discutir com Fabio Herrmann. Tratava-se de uma criança que deveria deixar o Brasil: seria adotado por uma família italiana. Era uma história trágica, com muitas mortes e separações.
Aquele menininho – que estava aprendendo a escrever seu nome e sobrenome – tinha feito um desenho incrível. Escrevera seu nome completo e, em seguida, desenhara um mar, no qual havia um tubarão que comia o nome dele.
Fabio então me perguntou: “E aí, isso é psicanálise ou poesia?”.
psicanalise pura.
É esse o psicanalista que dá orgulho de ler: que não se enlameia do psicanalês e vive a psicanálise de verdade no encontro de fato com o outro,
Poxa… quanto mais me aproximo da psicanálise mais me sinto atraída por ela! Parabéns pela entrevista!
é bonita mesmo, nao?