Jogos de azar - entrevista
01/04/13 09:53As compulsões como os jogos de azar, a adição às drogas e às compras compulsivas tornaram-se marca da contemporaneidade. Convidei a psicanalista, Maria da Penha Zabani Lanzoni*, para conversar sobre as possíveis implicações inconscientes desses sintomas.
Luciana: Como surgiu seu interesse pelo jogo de azar?
Penha: Estava atendendo uma paciente viciada em vídeo pocker. Ela ganhava apenas o suficiente para se manter, mas, pagava as casas de jogo. Às vezes emitia cheques sem fundo e às vezes emitia cheques que sustava no dia seguinte. Vivia atolada em dívidas enormes, sofria ameaças de credores (os donos das casas de vídeopocker), faltava muito ao trabalho porque passava a noite jogando e não conseguia acordar, deprimia-se etc.
Percebi que a literatura psicológica e psicanalítica sobre o jogo de azar era pouca ou quase nada. Fala-se muito sobre a compulsão ao jogo, mas essa explicação era insuficiente, não dava conta da riqueza do material clínico apresentado pela paciente. Resolvi investigar mais profundamente o caso para entender a situação, para ver se conseguiria ajudá-la melhor.
Luciana: Como se deu a investigação?
Penha: Eu queria saber quais eram os determinantes emocionais daquele comportamento. Já tinha muito material escrito sobre a paciente. Aliás, ela não havia procurado análise porque jogava, ela havia procurado ajuda devido a uma série de outros sintomas. Somente dois anos depois de iniciado o tratamento foi que ela contou que jogava. O jogo era apenas mais um dentre tantos sintomas. Resolvi focar a investigação no jogo porque ele era, de longe, o sintoma mais exuberante e intrigante, pois permeava a sua vida. Sua vida era um jogo.
Comecei por escrever a sua história. No entanto, esse trabalho não foi linear. Eu escrevia uma história e quando ia retomá-la para dar sequência à escrita, não conseguia dar continuidade à história iniciada e começava de novo, acabando por escrever outra. Essa nova história tinha elementos comuns com a primeira, mas era outra – muita coisa era diferente. Acabei por escrever cinco histórias, cinco versões diferentes da paciente. O próximo passo foi analisar cada versão e fazer uma relação entre elas.
Luciana: E qual a sequência da investigação?
Penha: Foram se delineando várias linhas de sentido. Não existia um único sentido para o ato de jogar. Ora a compulsão ganhava relevância, ora a sexualidade podia se realizar por meio do jogo… Explico: não havia uma “causa” para o ato de jogar, mas várias, como eu suspeitava. A pesquisa revelou pelo menos cinco, “lógicas emocionais” que se expressavam através do mesmo fenômeno.
Luciana: Podemos dizer que seriam cinco personalidades diferentes?
Penha: Não, é mais complexo do que isso. A paciente era uma, tinha uma única identidade gravitando em torno de multiplos eus, decorrentes de regras emocionais específicas.
Luciana: A quais conclusões chegou com a pesquisa?
Penha: Destrinchando as várias histórias, por exemplo, pude ver que numa ela mostrava que ganhar era preciso para realizar todos os seus sonhos de sucesso. Sonhos de fazer grandes viagens, conhecer o mundo, ter o poder que o dinheiro abundante dá, oferecer-se e oferecer à família uma vida abastada e sem problemas financeiros etc. Mas ao lado disso, havia a história que revelava que perder também era recompensador. Se ela perdesse tudo, não teria nada mais para oferecer à família que tentava despojá-la de tudo que era seu, dinheiro e bens materiais. Quando ela os visitava a mãe mexia na sua mala e tirava roupa íntima, shampoo etc. para seu próprio uso. Não ter mais nada que eles pudessem tirar-lhe era uma solução. Solução patológica, mas ainda assim, solução.
Luciana: O que aprendeu com sua pesquisa?
Penha: Aprendi a levar em conta tudo que surge em determinado caso. A forma que toma o relato do caso de um paciente não pode nem deve ser negligenciada. Aprendi também que as regras emocionais inconscientes que dão vida a um determinado comportamento, a uma maneira de ser do sujeito são muitas e o próprio paciente é múltiplo. O jogo de vídeo pocker era um sintoma, complexo, que revelava e dava expressão a várias facetas.
Luciana: Como tudo isso ajudou o tratamento da paciente?
Penha: Não fiquei presa a uma única teoria que pudesse dar sentido aos sintomas, como a compulsão ou a sexualidade supostamente reprimida. Percebi que cada um daqueles “eus” relacionava-se e esperava de mim algo bem diferente. A paciente que desejava ganhar no jogo tinha uma expectativa da análise. A paciente que desejava, embora não quisesse, perder, tinha outra expectativa bem diferente e agia comigo de acordo com essa versão.
Luciana: Quais as implicações desses achados no caso de outras compulsões como drogas ou comida, por exemplo?
Penha: A implicação é uma só. Diante de um sintoma importante temos uma problemática complexa. Por isso, não podemos ser ingênuos e acreditar que um tratamento apenas medicamentoso ou apenas psicoterápico, cujo foco é eliminar o sintoma, vá dar conta do problema.
É preciso ir fundo nas várias determinantes emocionais, nos inúmeros conflitos presentes nessas patologias, de sorte que possamos, junto com o paciente e com a ajuda dele, tornar acessível o que estava inconsciente. Que ele possa ter nas próprias mãos sua vida, construir um caminho por escolha consciente e não mais ser compelido a determinado comportamento.
* psicanalista, membro efetivo e docente da SBPSP, membro efetivo, analista didata e docente da SPRJ, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP.