Mutuamente excludentes
27/03/13 10:11Internauta: Minha esposa segue a filosofia taoista. Segundo essa filosofia a ejaculação é desperdício de vida, portanto, ela não gosta que eu goze. Toda vez que atinjo o orgasmo ejaculatório ela faz eu me sentir culpado e pede para eu juntar o esperma entre os dedos e colocar num vaso de plantas. Como satisfazê-la e ao mesmo tempo não me privar do prazer de gozar?
Luciana: quando éramos crianças estudamos em matemática os conjuntos. Havia conjuntos que eram mutuamente excludentes. Sua questão é matemática simples, tão simples que me surpreende que você não saiba a resposta. É uma falsa questão ou talvez você esteja gozando da e na minha cara, já que o tema é esse.
Resíduo
De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco
Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
– vazio – de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil…
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver… de aspirina.
De tudo ficou um pouco.
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
Aurea Rampazzo, coordenadora das oficinas de criação literária do Museu Lasar Segall, escolheu o poema para essa pergunta/resposta.
Dica: Entrando numa fria, filme de Jay Roach, é uma comédia deliciosa. Duas famílias, duas culturas em choque.
Eh facil falar, Luciana… mas as pessoas as vezes, *por incrivel que pareca*, nao se apercebem das coisas que estao acontecendo.
Eu por exemplo, aceitei, no meu 1o. casamento que meu marido , sempre , ejaculasse fora de mim. Coito interrompido. Eu aceitei ele, do jeito que ele era, por 10 anos… Hoje me pergunto como deixei isso acontecer…
Essa parte da filosofia taoista é bem doida, nunca tinha ouvido falar. Achei bonito o poema selecionado, mas discordo de Drummond quanto o mau cheiro da memória. Falando em memória, sempre gostei dos conjuntos em interseção.
Acho que o mau cheiro a que Drummond se refere eh a saudade, eh perda, a dor da perda daquilo, bom ou mau, que passou. Acabou. E deixou um traco, por imperceptivel que seja, deixou um resto. Falando em operacoes matematicas, quando se opera com (numeros) Reais, as vezes ha um resto. A divisao, dependendo dos numeros envolvidos, deixa sempre um resto.
Ana Carolina, cada leitura é uma leitura… sobre a relação que você expôs, e que não passou despercebida para mim… Tudo bem, poderia até compreender… mau cheiro da morte na memória. Cheguei até a pensar sobre isso depois… se eu havia lido mal o poema e se de repente ele poderia ter um teor político que justificasse essa memória com mau cheiro (uma memória mais traumatizante, violenta, sangrenta, cadavérica). É preciso ler com calma, e confesso que tenho lido com uma certa rapidez. No que diz respeito às operações matemáticas, da pouco que lembro, as mais lúdicas para mim referiam-se aos conjuntos e às análises combinatórias. Até acredito que, na realidade, existam conjuntos de fato excludentes, sim. Quanto ao termo “acabou”, prefiro pensar no “transformou”, no “virou outra coisa”. Quanto ao que resta, ao que fica sobrando, nas contas e cálculos reais, ele pode ser de grande valia… é com ele que formamos a poupança, que acumulamos renda… resto pode ser excesso… pode ser muito positivo!
Correção: das poucas que lembro… ou do pouco que lembro
Adorei! Se ele gozou da sua cara, tomou. Se é a mulher que tá gozando com ele, ele entendeu.
A sua mulher também não deveria se sentir culpada por menstruar? Afinal, é um óvulo que está sendo “jogado fora” todo mês. Ela vive permanentemente grávida? E envelhecer, também não é um desperdício de células, de vida? E quando você tem sonhos eróticos, também é errado? Meu, que loucura. As religiões chegam (ou seja, nós deixamos e queremos que chegue) a tal nível de controle dos nossos atos fisiológicos que me espanta. Se a sua mulher não permite que você goze, o que você está fazendo com ela? Se ela quer que você tenha um “prazer correto”, você concorda com ela, pois se sente culpado. Caia fora desse casamento ou diga a ela com todas as letras para não te amolar, que o gozo é seu de fato e de direito. Goze e seja feliz.
Mto lacaniana, adorei!