Aprendendo a Lidar com os Medos – Entrevista
11/03/13 09:19Convidei o psicólogo e psicanalista, Julio Cesar Walz*, para conversar sobre seu livro, Aprendendo a Lidar com os Medos – A Arte de Cuidar das Crianças. O livro é dedicado a todos que desejam entender melhor o universo infantil e seu imaginário, o desenvolvimento psíquico, as relações entre pais e filhos, professores e alunos. O autor busca ajudar os pais e demais cuidadores, a cumprirem o papel de intermediadores entre a realidade psíquica e a vida da criança.
Muito além da autoajuda, sem fórmulas nem regras, essa pequena obra sensível e inteligente constrói uma ponte entre o infantil e o adulto. Sua leitura estimula a criatividade na relação com as crianças e reacende a chama do brincar que mora, por vezes esquecida, em todos nós.
Luciana: A arte de cuidar das crianças, é o subtítulo de seu livro, Aprendendo a lidar com os medos, por que escolheu o termo arte?
Julio: O cuidar é uma arte. A obra de arte não é uma simples reprodução (senso comum) das coisas. Para destacar um ponto do todo ou para querer dizer algo, o artista não pode se prender ao fato em si… Ele não pensa/sente/age sendo um mero espelho. Por exemplo: você deseja ensinar ao seu filho que arma de brinquedo não é uma boa coisa. Tira dele, explica, argumenta. Ele concorda. Passam alguns dias, você chega em casa e ele te aponta uma régua e dispara um tiro. Caso você largue sua “capacidade artística”, imediatamente vai sentir e pensar: meu filho é um bandido, desaforado, não aprende o que ensino. Vai receber literalmente a ação da criança e devolvê-la com algum tipo de raiva e/ou agressão. Agora, se você tiver esta habilidade de não se prender meramente ao fato, vai ver e aceitar que a criança está brincando. Ela não fez nenhuma confusão. Ela apenas está brincando. O adulto é que tomou a cena literalmente, provavelmente por sentir-se ofendido e desrespeitado. Encheu-se de razão e trocou rapidamente o brincar pela força cruel da moral ou pelo poder, que normalmente chama de educação.
Outro exemplo corriqueiro: quando nascem os dentes de um bebê, ele normalmente começa a usá-los (investigar o mundo e as sensações novas). Caso investigue o seio da mãe de maneira mais forte (mordida), a mãe irá sentir dor. Se ela ficar “ofendida”, ou achar que seu filho (a) é mau, irá agir nesta mesma moeda. Estes dois pequenos fragmentos são exemplos de um universo diário da vida e do convívio de cada um de nós. Enfim, escolhi o tema da arte para realçar que esta emoção precisa ser esculpida no adulto diariamente: que é a capacidade de largar o sentimento de onipotência e seguir pelos caminhos maravilhosos e incertos da investigação ou do amor. Aliás, é muito interessante a origem etimológica da palavra cuidar. Cuidar vem do latim cogitare, que significa (conforme o dicionário do Aurélio Buarque de Holanda): imaginar, pensar, meditar, cogitar, aplicar a atenção, o pensamento, a imaginação, fazer os preparativos. Cuidar não se refere apenas a um mero ato de preparativos concretos. É, acima de tudo, uma capacidade de olhar verdadeiramente, com interesse e imaginação. Cuidar ou amar é o oposto do poder. Nada de novo nesta afirmação. Como digo no livro, “para poder cuidar é necessário um relativo desprendimento da realidade concreta para que sobre ela possamos projetar a imaginação e criar alternativas de solução. A realidade concreta é crua, contundente e imperiosa”. Esta é a alternativa para escaparmos desta criminosa ilusão (a do poder), de que sabemos tudo e de que somos e queremos ser o centro da vida.
Enfim, a arte de cuidar é o exercício diário de ajudar a nós mesmos e a criança a descobrir e construir o mundo permanentemente, justamente para que não confundamos o brincar e o poder.
Luciana: Quais desafios o cuidador tem que enfrentar ao realizar esta arte?
Julio: O primeiro e decisivo está dito acima. Ou, como digo no livro: “o adulto cuidador é aquele que aceita que usa sapatos grandes em pés pequenos”. Se o adulto consegue largar por boa parte do tempo o seu delírio de grandeza, ocorre que ele inevitavelmente se tornará um “colega” mais experiente na descoberta permanente da vida. E a consequência será a de ajudar na construção de pontes mentais. Do que se trata? A vida é uma contínua força de crescimento e mudança. E até que alguém possa atingir certa estabilidade psíquica, se assim podemos dizer, são necessários longos anos. Mas para que esse processo aconteça, a criança necessita de ajuda. Ajuda quer dizer: não permitir que ela fique lançada ao infinito e vazio por longo tempo. Necessita de pontes emocionais e concretas para que, no ir e vir da relação consigo e com o seu meio, não fique presa ao excesso impactante da realidade e das instabilidades normais de uma vida. Uma maneira de pensarmos este tema do excesso seria através das relações espaço e tempo. Vamos imaginar a seguinte cena: um bebê dormindo no carrinho e o cuidador (mãe, pai, avó, babá) está na cozinha. De repente, a criança acorda e chora. O cuidador deixa suas tarefas e vai atendê-la. A criança lançou uma mensagem ao espaço (choro) e o cuidador veio com a experiência do tempo (a mensagem não fica solta) e restringe o espaço infinito da mensagem ao atendê-la. Agora, suponhamos que a criança fique chorando por uma hora inteira até que apareça alguém. A cena seria a do excesso de espacialidade ou da mensagem perdida no infinito e a pouca presença do tempo continente. Ou seja, uma angústia brutal. Enfim, a ponte é o elo afetivo que vincula as duas pessoas e ninguém fica no vazio diante do outro.
Luciana: A forma como imaginamos o que é uma criança determina a forma como cuidamos dela?
Julio: Eu diria que a forma como cuidamos de uma criança está diretamente ligada à maneira como nos vemos como adultos. Se achamos que sabemos tudo, que já estamos plenamente formados, não padecemos de dúvidas, temores ou mudanças constantes de opinião, restará da nossa parte apenas ensinamentos. Agora, se soubermos que o processo de crescimento de um ser humano é conflituoso até o fim da vida, com idas e vindas, e que ela, a criança, necessita de um adulto cuidador que não a deixe lançada ao infinito por muito tempo, seremos parceiros naquilo que é decisivo: a vida é uma eterna descoberta.
Luciana: Qual o sentido dos segredos familiares?
Julio: Depende de quais segredos estamos falando. Por exemplo: o segredo da vida íntima dos pais deve ser preservado. Uma criança recebe excessivamente a realidade da sexualidade. A consequência do excesso geralmente é certo aprisionamento ou paralisia e a diminuição da vida criativa. Afinal, ela fica diretamente ligada à coisa em si. Agora, mentiras que escondem segredos acerca de problemas que são vividos, mas não falados, também geram excessos, porque uma criança nota e sabe que algo não está bem. Sempre considero que a mentira é a pior maneira de se conviver com uma criança. Aliás, como disse Françoise Dolto (psicanalista francesa), “as crianças suportam a verdade melhor que os adultos.”
Luciana: Como a criança vê o adulto?
Julio: Em primeiro lugar, o adulto é necessário para a criança. Sem um adulto ela morre. Uma parte da relação está baseada nesta necessidade imperiosa. E ele é visto por ela como capaz de tudo. Este mecanismo a deixa mais protegida diante da imensidão da vida, percebida em todas as entranhas do corpo. Ao adulto não cabe dizer ou provar para a criança que ela está errada. Ao adulto cabe ajudá-la a seguir adiante cada vez que ela descobrir que os adultos não são tudo o que ela pensava. Mas existe um segundo aspecto importante. Entre adultos e crianças existe algo que Sandor Ferenczy chamou de “confusão de línguas”. Do que se trata? Para uma criança o tempo é eterno. Para o adulto não mais. Veja, quando um adulto se desentende com a criança, a emoção desta será de que o adulto jamais irá gostar dela novamente. O adulto já aprendeu que daqui a pouco as coisas se acalmam e tudo volta ao normal. Nesta relação de confusão de tempo e amor, o adulto precisa ajudar nesta passagem, para que ela não fique com uma infinita sensação de eternidade de abandono.
Luciana: Por que os medos?
Julio: O medo é uma resposta biológica muito primitiva e primordial, tanto na espécie humana quanto na animal. É o mecanismo básico através do qual podemos nos defender, tanto atacando como fugindo (luta e fuga). É central no desenvolvimento. Quando ele fica demasiadamente ativado, ou por longo tempo, o pensamento tende a ficar paralisado ou repetitivo. Aliás, muitos pais usam o medo como base para gerar ou alterar comportamentos ou ainda associado a mecanismos de recompensa. E funciona para estes propósitos. No entanto, este uso dificilmente estará a serviço de uma vida mental saudável ou criativa. Neste sentido, o adulto é convocado a ajudar, através das pontes, para que o medo não se estenda por muito tempo na vida mental e cerebral das crianças. Imaginem como é a vida mental de uma criança cujo pai ou mãe seja alcoólatra. “Como ele ou ela vão chegar em casa? O que irão fazer? Será que irão me agredir enquanto durmo?” Esta dúvida cruel e diária deixa uma criança em pânico e profundamente triste. Este é um pequeno exemplo de milhares de lares em nosso país, cujas consequências são bem conhecidas nos serviços de saúde. Então, o tema do medo foi escolhido para podemos pensar o assunto do cuidado com as crianças de maneira mais amorosa e com menos terror nas casas.
Luciana: Qual a importância do brincar na arte de cuidar dos filhos?
Julio: Toda. Especialmente quando o adulto não confunde o brincar com fatos puro e simples. Cuidar das crianças é uma questão de saúde pública. Elas naturalmente brincam, exploram o mundo através do lúdico. Um dia são mocinhos e no outro bandido, sem o menor problema. Justamente porque no lúdico vão elaborando conflitos emocionais do desenvolvimento. E quando um adulto resolve interromper o lúdico por intermédio da força unilateral da interpretação, geralmente a criança vai deixando de lado esta atitude de viver a brincadeira. Lembra do exemplo do revólver de brinquedo? Pois é, o grande erro do adulto é confundir o brincar da criança como se fosse verdade ou eterno. Neste momento, a experiência do ir e vir, tão decisivo para a construção das bases para o aprendizado com a experiência, deixa de ocorrer em sua maior plenitude.
Luciana: O que dizer para os pais que perderam um ou mais filhos?
Julio: A dor é inimaginável e, provavelmente, “incurável”. Já vi pais que ao perderem seu filho (a) decidiram deixar de viver e esperaram ou produziram sua própria morte. Já vi pais que criaram ONGs ou projetos sociais relacionados à morte de seu filho (a). Mas, mesmo assim, a dor desta perda é terrível. Nestas horas, o sentimento de culpa fica muito mais intenso: os pais pensam em tudo o que deveriam ter feito ou em tudo o que deixaram de fazer e agarram-se a uma ideia geralmente delirante de que poderiam ter evitado o ocorrido. Se mantiverem esta crença, a dívida ficará impagável e a vida não conseguirá ressurgir. Mas se eu pudesse dizer algo, seria que o único caminho que temos é tolerar o tempo para tentar curar um pouco esta grande ferida, recolher os pedaços e, aos poucos, voltar a amar o viver.
*Possui graduação em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1992), mestrado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS – 2003), doutorado em Medicina: Ciências Médicas (UFRGS – 2006) e Pós-Doutorado em Ciências Médicas (UFRGS – 2008). Atualmente, é professor no curso de Psicologia da Unilasalle-Canoas e pesquisador colaborador no Laboratório de Psiquiatria Molecular do Hospital de Clínicas de Porto Alegre nas áreas de psicopatologia, neurocognição e alterações neurotróficas. É também autor do livro, O sentimento de culpa, junto com o psicanalista, Paulo Sergio Rosa Guedes.
Luciana, valeu a entrevista.
Estou encaminhando para minha filha Silvia.
bjocas,
Esther Ludmer
que bom!