O sonhar e o sonho - Entrevista
04/03/13 13:19Desde a antiguidade, o Homem procurou sentido para o sonho e para o sonhar. Foi na passagem do século XIX para o XX que os sonhos ganharam uma interpretação psicológica. Freud entendeu que eram a expressão psíquica de vivências emocionais e desejos proibidos. Em 1900 lançou seu mais famoso trabalho, intitulado, a Interpretação dos Sonhos, obra que desvendou a vida onírica de forma científica e detalhada e mudou para sempre a concepção que temos sobre o sentido dos sonhos. Para conversarmos sobre esse tema convidei a psicanalista, Cecilia Orsini, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, coordenadora de seminários de Freud no Instituto de Formação da SBPSP e coordenadora de grupos de estudo particulares, no consultório, e em instituições fora de SP.
Luciana: O que foi que Freud descobriu em relação aos sonhos?
Cecilia: Poucos sabem, mas Freud descobriu um método muito eficaz de interpretar os sonhos, que demonstra que os sonhos tem um sentido. Seu método constitui-se em dividir o sonho em partes e deixar a mente solta, a pensar livremente em torno de cada detalhezinho do sonho (a famosa “associação livre”). E isso não é fácil… Pois é muito importante que o “sonhador” não omita nem critique nenhuma ideia que lhe ocorra, sob o pretexto de que sejam “bobagens” absurdas, assim como o sonho em si. Por incrível que pareça, a psicanálise constitui-se em torno daquilo que costumamos considerar absurdo ou bobagem. Pois este é o modo que temos para nos defender de pensamentos obscuros, inconfessos, eróticos, invejosos ou hostis ao outro. No entanto, estas ideias se apresentam como parte essencial daquela área da mente que Freud vai denominar, seguindo o romantismo e certos filósofos, de “o inconsciente”. Mas somente Freud irá considerar esta parte do nosso funcionamento psíquico como uma estrutura estável e regular, cuja lógica é absurda, e o mais incrível: tem grande eficácia na orientação da nossa conduta, embora desconhecida da nossa consciência. A experiência clínica desde então, há mais de cem anos, tem comprovado a hipótese do inconsciente.
Vou dar um exemplo: sonhamos que fazemos amor com um antigo namorado, mas ele tira uma gravata idêntica a do chefe e a “transa” acontece na cama conjugal, situação que lembra o marido… O que isso significa? Sempre vai depender – e isto é crucial – do que o sonhador associar a cada um destes detalhes… Já que não somos o “sonhador” deste sonho, vamos fazer um exercício livre. Nunca é demais a frisar: o verdadeiro sentido do sonho é peculiar, só vale a partir da cabeça do sonhador. Imaginemos, então, que este sonho pode significar, por exemplo, um desejo erótico encoberto em relação ao chefe e um desejo de trocar o marido pelo chefe e o ex-namorado, no que tange a relação sexual, que não é mais tão “quente”… Quer dizer, o sonhador não tem a menor notícia de que carregasse essa ideia.
Luciana: Como se consegue fazer esta “tradução”, duma imagem absurda para um sentido coerente ainda que conflitivo, desagradável ou difícil?
Cecilia: Freud supôs que os mecanismos de elaboração do sonho mais importantes são basicamente três:
1 – transformar pensamentos complexos em imagens visuais simples;
2 – deslocar o que importa para algo irrelevante;
3 – condensar diferentes situações e pessoas numa imagem só.
Seguindo nosso exemplo:
Na gravata que o ex-namorado tira, um detalhe irrelevante, é que se revela, “deslocada” a presença do chefe. E as três pessoas – ex-namorado, chefe, marido – aparecem “condensadas” na aparição de uma única figura: a do ex-namorado. E toda complexa situação a que se refere o sonho aparece num ato sexual. É justamente no sonho que se observa com mais nitidez, o modelo deste funcionamento mental inconsciente, que disfarça os pensamentos presentes na mente, no entanto, “impensáveis” para o sonhador.
Em primeiro lugar, o sonho transforma o texto destes pensamentos (cuja hipótese central é de que eles estavam presentes de forma inconsciente durante a vigília) numa imagem visual, no exemplo: mesclam-se pensamentos relativos a vida conjugal e relativos ao chefe.
Em segundo lugar, o sonho desloca o acento tônico de emoções mais poderosas (o desejo erótico pelo chefe) para partes do sonho que aparecem como particularmente inofensivas (uma gravata). É o que Freud chamou de “deslocamento”.
Em terceiro lugar, o sonho condensa numa única imagem situações emocionais muito diferentes: o desejo de mudar, a mornidão no casamento, a nostalgia de um enamoramento, o apelo sexual do chefe, os desafios que o chefe impõe, etc.
Luciana: Como isto se relaciona ao sentimento popular, desde tempos imemoriais, que os sonhos comunicam algo importante?
Cecilia: Justamente pelo fato de os sonhos revelarem, de modo disfarçado, desejos inconscientes para aquele que sonha. No entanto, como a censura não é total, o sonhador desperta com a nítida sensação de que o sonho quer lhe dizer algo. A grande novidade em relação à tradição popular é o papel daquele que sonha na interpretação do texto do sonho. Freud dizia que seria como hieróglifos, uma língua obscura, que podemos decifrar, sem apelar para nenhum dicionário de símbolos, oráculos ou intérpretes, que ao contrário do que se pensa, afastam o sonhador do contato consigo mesmo.
Luciana: Desde as descobertas de Freud, algo modificou-se em relação ao sentido dos sonhos?
Cecilia: Não, para aqueles que praticam a psicanálise ou psicoterapias baseadas em seu método e achados teóricos. Somente a ênfase em seu conteúdo, e o modo de utilizá-lo na sessão, varia ligeiramente de uma linha teórica para outra. A linha Junguiana, por exemplo, trata o sonho de maneira bem diversa, apelando para os simbolismos típicos, chamados de arquétipos, na sua relação com aquele sonhador específico. O simbolismo, como o entende a psicanálise, ainda que possa ser “típico”, ou seja, que se repita num dado universo de sujeitos, só pode ser considerado se aparecer, enquanto tal, nas associações do sonhador.
Luciana: É possível interpretarmos os próprios sonhos?
Cecilia: Sim , é possível, desde que se siga o método, que se tenha coragem e condições emocionais para tanto…Por isso é preciso fazer uma ressalva muito importante: como o sonhador está numa relação de defesa em relação àquilo que sonha, ele resiste a fazer as associações, onde experimenta suas ideias como temíveis e/ou absurdas. Portanto, dentro de um contexto de uma análise, o receio de defrontar-se com o absurdo, é amparado pelo psicoterapeuta. Mas, o próprio Freud, descobriu uma série de achados importantes, mediante a análise dos seus sonhos. Não que todos consigam agir como Freud em relação aos próprios sonhos, mas a aventura da descoberta do inconsciente aconteceu desta maneira…
Luciana: Todo sonhador é um artista criativo enquanto sonha?
Cecilia: Sim, desde que se considere que o sonhador inventa todas as noites imagens, cenas, que diferem muito de sua vida cotidiana e que podem empurrá-lo para outras paisagens, como a arte costuma fazer.
Luciana: E os pesadelos?
Cecilia: Os pesadelos, ou sonhos de angústia, são aqueles sonhos em que a censura “falhou” um tanto. O que isso quer dizer? Que o “disfarce” promovido pelo mecanismo do sonho não foi tão eficaz. Um exemplo muito comum é o sonho com a morte de entes queridos. Para a vida desperta, é impensável que se queira perder uma pessoa amada. No entanto, em outra espaço psíquico, este pensamento é possível, por raiva, desgosto ou decepção profunda.
Luciana: A grande obra, a mais importante, de Freud continua sendo a Interpretação dos Sonhos? Por que?
Cecilia: Sim. Por que é nesta obra que Freud revela ao homem o absurdo de si mesmo (coisa que a literatura e a arte já haviam feito, a sua maneira). Mas, a grande diferença no caso de Freud, é que isso aconteceu mediante o rigor de um método de trabalho e da comprovação de leis de funcionamento específicos, como aquelas apontadas na resposta à primeira pergunta. É nesse sentido que entendemos uma das afirmações mais conhecidas de Freud: a de que o homem sofreu o terceiro golpe em sua arrogância e vaidade, quando descobriu que a razão não é o centro de sua conduta. O primeiro golpe foi desfechado quando Copérnico demonstrou que a Terra não era o centro do Universo. O segundo, quando Darwin descobriu que o homem não era o centro da criação. E o terceiro, quando o homem descobre que seu “eu” não é senhor em sua casa…
Luciana: Depois de Freud muitos se interessaram pelo tema. Quais foram as contribuições que agregaram mais ao conhecimento produzido pelo pai da psicanálise?
Cecilia: Para falar a verdade, a concepção de sonhos descoberta por Freud foi tão essencial para os praticantes de psicanálise e de psicoterapias afins, que aquilo que se agregou representa muito mais “variações sobre o mesmo tema”, do que propriamente novas produções de conhecimento. São ênfases diferentes, maior atenção aos sonhos de angústia, maior atenção à dificuldade de “sonhar acordado”, ou seja, desejar e fantasiar, menor atenção em interpretar o sonho na sessão. No entanto, como o fulcro de minha prática e estudos está mais localizada em torno da obra de Freud (embora inclua também outros autores), pode ser que algum colega que tenha abraçado outros autores com mais afinco e dedicação, possa responder melhor esta questão.