Psiquiatria e Psicanálise
21/01/13 10:15Para conversarmos sobre as diferenças entre Psiquiatria e Psicanálise convidei Oswaldo Ferreira Leite Netto, psiquiatra e psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e diretor do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Luciana: Como surgiu a Psiquiatria?
Oswaldo: A Psiquiatria foi a primeira especialidade que na história da Medicina. Considera-se que foi criada por Phillipe Pinel, médico francês do final do século dezoito. Um ato simbólico, solenemente imortalizado em célebre pintura de Tony Robert-Fleury, marca o nascimento da Psiquiatria. O quadro representa Pinel ordenando que se retirassem os grilhões dos alienados.
A partir daí haverá descrições classificatórias das diversas formas de loucura, minuciosas e frutos de observações detalhadas, caracterizando a Psiquiatria. Bem como a “Terapia Moral”, baseada na ideia de que a conversa, a orientação e os bons exemplos reconduzem os alienados ou loucos à normalidade, investindo em núcleos residuais de sanidade que todas as personalidades apresentam.
No mesmo ano em que é lançado o tratado de Pinel, 1801, Bichat, médico anatomista e fisiologista, também francês, lança seu tratado em que descreve o fator patológico: alteração verificável no organismo que determinaria o funcionamento patológico, a causa da doença, a ser encontrado para embasar diagnósticos……Esta é a noção que sustenta toda a medicina ocidental científica até hoje, que avança espetacularmente com os recursos tecnológicos que permitem a visualização e a identificação do tal fator patológico, hoje em dia chegando a níveis moleculares….! É o método anátomo-clínico, que fundamenta a atualmente chamada medicina baseada em evidências. E indica a principal via dos avanços em Medicina.
Luciana: Qual a relação entre as Neurociências e a Psiquiatria?
Oswaldo: A primeira especialidade médica tornou-se na contemporaneidade a última a adotar o método anatómo clínico. Nos últimos anos as neurociências passaram a ter papel central, tendem a ser única fonte digna de crédito para compreensão diagnóstica em Psiquiatria e validar propostas e resultados terapêuticos. A neurociência passa a ser, portanto, o desejável sustentáculo científico da Psiquiatria.
Luciana: Como a Psicanálise é recebida nos meios médicos que necessitam das evidencias anátomo clínicas?
Oswaldo: Retrocedendo um pouco na história, temos no início do século XX a criação por Freud, médico neurologista vienense, da Psicanálise. Deixando de lado a anatomia e fisiologia, ele estabelece as bases teóricas e técnicas para uma clínica e terapêutica dos sofrimentos psíquicos – propõe a existência de uma mente ou aparelho psíquico e concepções teóricas que permitiriam o entendimento das dificuldades emocionais humanas.
Freud pretendia dar um papel importante para a Psiquiatria, equivalendo-a ao que a fisiologia e a anatomia representavam para as outras especialidades e garantir confiabilidade e eficácia nas terapêuticas. Mas isto sempre foi difícil para a assimiliação médica, dado este distanciamento do biológico. Tornou-se desconcertante para os médicos cada vez melhor instrumentados para constatar as alterações do organismo, aceitar as formulações e as experiências das investigações psicológicas da mente humana propiciadas pela Psicanálise. Diria que, atualmente, nos meios médicos mais importantes a conversa é quase impossível dada a exigência de comprovação de eficácia e precisão para indicação das propostas terapêuticas psicanalíticas.
Luciana: Qual é então a especificidade da Psicanálise?
Oswaldo: A Psicanálise é radical na consideração pela subjetividade, pela singularidade dos indivíduos e na dificuldade de padronizar e circunscrever normalidade, quando se trata de comportamento e funcionamento de personalidades.
Nós humanos que pertencemos ao reino animal, paradoxalmente, pertencemos ao reino da cultura ou da civilização, transitamos pelo simbólico, pelas representações e nossa imaginação tem parte integrante nas nossas escolhas e práticas.
Vejamos dois exemplos: nutrição e sexualidade. Duas áreas onde valores, tradições, moral, princípios variados tomam papel fundamental. Alimentos são próprios para determinadas datas e até dias da semana, a tradição impera. Até o apetite muda: se é sábado ou quarta pensamos que uma feijoada cairia bem…..E, quanto a sexualidade, falamos em erotismo. Ninguém se implica em práticas sexuais com finalidades reprodutivas ou só para isso como os outros animais. Nossas fantasias eróticas são constantes, intensas, variadas. E nossas práticas também, dificilmente patologizáveis. E, as mudanças culturais vão assimiliando, permitindo ou coibindo. Casamentos abertos, parcerias do mesmo sexo, tudo é possível, admissível, compreensível.
Luciana: Então a Psiquiatria não considera o animal simbólico, o animal racional não está inscrito na nossa biologia?
Oswaldo: A Psiquiatria pretende atualmente ser uma especialidade médica como as outras. Portanto, o que não tem evidências, o que não pode ser mensurado, demonstrado, numa linha direta de causa e efeito é deixado de lado para evitar confusão e mal entendido.
Luciana: Quais as consequências dessa postura?
Oswaldo: Penso que as consequências que considero preocupantes dizem respeito à clínica, ao atendimento e ao tratamento dos que necessitam ajuda. Uma pessoa tem que ser acolhida e compreendida na sua singularidade. Protocolos médicos que padronizam condutas, prescrições e medicamentos podem não alcançar a sutileza que a escuta psicanalítica ilumina e esclarece sobre as fontes de sofrimento psíquico de determinada pessoa.
Luciana: Na teoria psiquiatria e psicanálise são dois mundos a parte, mas na prática psiquiatras encaminham pacientes para psicanalistas, como ocorre a conciliação dessas duas visões? Ocorre?
Oswaldo: Se não ocorre, deveria ocorrer. Trabalho com formação médica e psiquiatra. Penso ser imprescindível para o clínico, para os médicos em geral e para o psiquiatra em particular ter conhecimento dessa abordagem suplementar aos tratamentos médicos propostos. Saber que há um mundo interno, subjetivo, possível de ser conhecido. E, que outra dimensão, a do desenvolvimento e amadurecimento pode ser acrescentada a um tratamento medicamentoso que alivia sintomas.
Cara Luciana, sua coluna de hoje suscitou-me esses comentários, pelo qual desde logo agradeço:
Dois critérios essenciais para fazer diferença entre psiquiatria e psicanálise que seu entrevistado não mencionou diz respeito aos conceitos de ‘inconsciente’ e ‘transferência’, totalmente rechaçados pela psiquiatria. E há um terceiro conceito – desconhecidos até mesmo de muitos psicanalistas – que faz muita diferença quando tomado em conta na clínica, que é o conceito de ‘desejo’, introduzido pelo psicanalista Jacques Lacan. Nada tem a ver com ‘querer’ ou vontade’, pois sua ação é inconsciente e tem uma força determinante nos rumos da vida de um sujeito.
Quanto a sua última pergunta ao seu entrevistado, minha experiência de mais de 25 anos de clínica (particular e hospitalar) é que não há conciliação entre esses dois campos. Cada um percorre trilhas muito diferentes, com propósitos e resultados muito distintos. Mas muito pouco se fala disso.
Sendo de teu interesse, envio abaixo, um endereço de um texto sobre esse assunto muito elucidativo e que, de tempos em tempos sempre retorno a ele e proponho que meus estagiários o leiam.
http://books.google.com.br/books?id=2Q96cTQWeDQC&pg=PA59&hl=pt-BR&source=gbs_toc_r&cad=4#v=onepage&q&f=false
Abraço,
Mª da Glória Telles da Silva – Porto Alegre
Maria da Glória, muito obrigada pelos comentários e pela sugestao de texto. Espero que muitos aproveitem! Concordo falarmos que Psicanálise e Psiquiatria sejam inconciliáveis hoje. Freud quis que a psiquiatria estivesse no campo da Psicanálise, podemos dizer que ele esperava que essa jovem ciência cumprisse sua vocacao, a de ser a ciência geral da psique. A psiquiatria, bebeu das aguas da Psicanalise no início do século XX, até que se distinguisse completamente. Mas, ainda escuto, com alguma frequencia, de jovens psiquiatras que sentem ser necessário oferecer ao paciente uma escuta diferenciada. O que foi colocou nessa entrevista é mais uma questao sobre a representacao social da psicanalise e menos a questao do desejo, tao bem lembrada por voce. Toda a prática clínica ou terapeutica requer uma razoavel representacao social. Se psiquiatras, mesmo que nao trabalhem como analistas, recomendam um tratamento suplementar, pode haver uma melhor representacao social de nossa atividade.
Se por um lado a psiquiatria corre o risco de se desumanizar por conta dos tratamentos padronizados e dos interesses da indústria farmacêutica, por outro a psicanálise encontra-se fora da realidade atual ao se recusar a prestar contas dos resultados de seus tratamentos. A pessoa que precisa de ajuda deve ser mais valorizada do que as posições ideológicas de psicanalistas e psiquiatras.
Rodrigo, concordo com você sobre quem precisa de ajuda ser mais valorizado do que qualquer ideologia. O paciente deve estar acima de debates, ele deve ser o foco do nosso interesse, sim. Mas, quanto a prestar conta dos resultados, discordo por dois motivos. Há pesquisas que já fazem isso, principalmente na Europa e USA, pois os sistemas de saúde exigem eficácia terapeutica. E há, sim, uma questao sobre resultado de terapia que exige posicionamento ideologico – deve-se questionar o sentido da palavra resultado ao máximo, ao extremo. Resultado nao pode ser confundido com interesses e normas sociais ou, mesmo, com adptaçao. Diversas formas de terapia dao bons resultados para os pacientes, mas nem sempre é o resultado esperado pelas suas familias e ou empregadores. Essa é uma questao ética a ser considerada. Outra questao’importante é que a prática da medicina nem sempre dá os resultados esperados, muitos nao se curam, pioram ou convivem com doencas crônicas, mas, nao cobramos da medicina mais do que seus avancos e pesquisas podem oferecer!
Luciana, acabo de ler o trecho de um artigo que considerei muito bonito e pensei em mostrá-lo a você, já que também sou leitora da sua coluna. De modo geral, gosto de ler artigos relacionados a atividades ou disfunções mentais etc. O artigo é sobre esquizofrenia e, embora eu não tenha essa disfunção, achei a leitura do artigo muito bacana. Segue o trecho mencionado:
“‘Every person has a unique gift or unique self to bring to the world,’ said one of our study’s participants. She expressed the reality that those of us who have schizophrenia and other mental illnesses want what everyone wants: in the words of Sigmund Freud, to work and to love.”
em:http://www.nytimes.com/2013/01/27/opinion/sunday/schizophrenic-not-stupid.html?_r=0
lindo trecho, muito obrigada!