A nutrição e os problemas alimentares
19/12/12 10:45Entrevista com Amanda Epifanio Pereira – Nutricionista do Centro Integral de Terapia Nutricional ( www.citen.com.br ).
Luciana: Como você considera o paciente que sofre com a obesidade e que te procura para se tratar?
Amanda: São pacientes angustiados e temerosos. Quase todos carregam alguma história fracassada na dura tarefa de perder peso e todos com muito medo e a falsa idéia de que a partir da consulta com um nutricionista, todos os seus prazeres alimentares serão definitivamente cortados de suas vidas.
Luciana: E o paciente anoréxico? Como você o vê?
Amanda: Há dois perfis de pacientes. Os pacientes mais jovens, que enfrentam a fase aguda da doença, mostram-se muito fortes e certos que não há nada de errado em seus corpos e que não estão doentes. Em geral, não aceitam as orientações nutricionais de imediato ou usufruem das informações para alcançar maior restrição calórica. Os pacientes mais velhos, que enfrentam a cronicidade da doença, são mais frágeis, cansados, muito deprimidos, com consciência da gravidade da doença e dispostos a se tratar. Buscam mais ajuda e precisam ser acolhidos em seus sofrimentos, pois vivem o confronto de querer melhorar e ao mesmo tempo não ganhar peso.
Luciana: Qual a contribuição da nutrição para a compreensão e tratamento da obesidade?
Amanda: Os nutrientes estão diretamente envolvidos na patogênese da obesidade, principalmente no que diz respeito à fome e saciedade, tanto no processo digestivo, quanto na modulação hormonal envolvidos nesses mecanismos. O processo de refinamento e a diminuição de fibras da alimentação tornaram o tempo digestivo mais acelerado, diminuindo a saciedade e aumentando o período de fome. Além disso, a absorção rápida dos nutrientes altera o equilíbrio de alguns hormônios, que estão diretamente envolvidos no ganho de peso. Os estudos recentes buscam elucidar a ação de hormônios intestinais no ganho de peso, mas já é bem claro a importância de hormônios gástricos e até mesmo hormônios produzidos pelo tecido adiposo (gorduroso) na patogênese da obesidade. Entretanto, apesar de tanta elucidação, o tratamento continua sendo: restringir calorias, com a finalidade de alcançar o balanço energético negativo, que resultará em emagrecimento.
Luciana: O que é indispensável para tratar a obesidade?
Amanda: É fundamental que se entenda os mecanismos que conduzem ao ganho de peso, além de erros alimentares. A obesidade é uma doença de natureza multifatorial, e a elucidação desses mecanismos é fundamental para desenvolver estratégias mais adequadas de tratamento. O foco nutricional é conhecer o comportamento alimentar de cada paciente, o que o leva a comer, se é movido por fome ou ansiedade, se é capaz de perceber a saciedade, como as refeições são organizadas ao longo do dia e quais as preferências alimentares. Essa investigação visa à elaboração de um plano alimentar individualizado, ajustado à realidade de cada paciente, para que possa ser seguido por período prolongado e possibilite mudanças de hábitos definitivas.
Luciana: Você vê diferença entre os pacientes que têm sobrepeso, obesidade e obesidade mórbida?
Amanda: Sim, quanto mais grave é a obesidade maior é a dificuldade de perceber o quanto se come. Pacientes com obesidade mórbida são incapazes de descrever com fidelidade o dia alimentar. Em geral apresentam recordatórios alimentares com cerca de um terço do consumo diário. Esses pacientes não tentam enganar os profissionais, nem mesmo enganar a si próprios, são verdadeiros em suas descrições e, talvez, por alguma proteção psíquica, ou mesmo comportamental, não percebem o volume consumido realmente. Já quase todos os pacientes com sobrepeso, conseguem reconhecer as causas que os conduzem à obesidade, e são capazes de dizer com absoluta clareza o consumo alimentar cotidiano.
Luciana: Como você considera o prazer em se alimentar, os sinais de saciedade e de fome na alimentação do paciente?
Amanda: O que regula o consumo alimentar é a capacidade de reconhecer a fome e perceber a saciedade. Ao sentirmos fome, passamos a desejar alimentos sabidamente prediletos, capazes de gerar prazer. Esse é um mecanismo fisiológico, e é natural a busca por alimentos palatáveis em situações de fome. A grande questão é que atualmente, com o estilo de vida da sociedade moderna, o padrão alimentar tem sofrido grandes alterações, modificando completamente o mecanismo de percepção de fome e saciedade. Muitas pessoas pulam refeições, principalmente café da manhã, ou fazem jejuns prolongados ao longo do dia, passando a sentir fome o dia inteiro. Por vezes, confundem a fome real, de um corpo que esta a mais de 10 horas sem comer, com ansiedade e/ou estresse, e então buscam alimentos palatáveis, em geral ricos em sal, açúcar e gordura, para satisfazer essa situação de desconforto. Como tais alimentos não causam saciedade , cria-se um ciclo de consumo alimentar difícil de romper – muita fome, pouca saciedade, desorganização, estresse, fome. Além disso, temos à disposição uma variedade de alimentos cada vez mais gostosos que aguçam nosso o paladar, causando grande satisfação e prazer. São alimentos que perpetuam o consumo. Afinal, como é possível parar de comer alimentos salgadinhos como pipoca, castanhas e amendoim? Ou não ficar com o gostinho de chocolate na boca após o consumo de um bombom? Alimentos gostosos e práticos somados à fome e incapacidade de ter saciedade, resultam inevitavelmente ao maior consumo e à obesidade.
Luciana: Quais as maiores dificuldades que enfrenta junto aos pacientes?
Amanda: As maiores dificuldade relacionam-se às tentativas de diminuir o açúcar, sal e as gorduras do dia a dia e convencê-los que é possível ter prazer com refeições sem esses ingredientes. Outro grande desafio é preparar a própria refeição ou ter alguém que os ajude com essa tarefa em casa. A carga horária de trabalho é cada vez maior, e o tempo para organização das refeições em casa quase não existe. Alimentos de fácil preparo passam a ser as principais escolhas dessas refeições, no entanto, não existem opções práticas que causem saciedade, sejam saborosas e magras! Outro desafio e convencer o paciente a fazer as três principais refeições diárias (café da manhã, almoço e jantar), sempre há uma justificativa para burlar tais refeições. A questão é que muitas mudanças são comportamentais e esse é o grande desafio.
Luciana: Por que comer virou um grande problema? E também um grande ato nos dias de hoje?
Amanda: Comer não é problema quando somos capazes de queimar energia com atividades física do cotidiano e/ou exercícios físicos programados. O que de fato mudou em nossa vida, foi a diminuição da atividade física do cotidiano. Não temos mais tarefas que propiciem grande gastos de energia, e o corpo tem um gasto de energia diário praticamente igual ao noturno. Com esse cenário, a evolução natural deveria ser a diminuição do consumo alimentar, e o que vemos é o oposto. Além de gastar menos energia, passamos também a comer mais. Somado ao estilo de vida sedentário e ao consumo exagerado, vivemos sob estresse crônico e o alimento aparece como o prazer mais acessível nessa realidade. Ao longo da história, os alimentos sempre ocuparam papel de destaque no quesito prazer, em diferentes sociedades e culturas, atualmente o que notamos é a supervalorização desse prazer. Chegar à noite em casa e não comer algo muito gostoso (lê-se gordura, sal ou açúcar) será como ter o dia perdido, ir ao teatro ou ao cinema não será um passeio agradável se não for seguido de um bom jantar, estar ao lado de pessoas queridas não será tão valorizado se não for cercado por guloseimas deliciosas… Parece quase impossível ter prazer ao degustar alimentos com menor teor de gordura, sem açúcar e com pouco sal, afinal “isso é comida para doentes!” Essa justificava é o que ouvimos diariamente nos nossos consultórios e o discurso de um nutricionista, na tentativa de modificar esse comportamento aparece como algo longínquo da realidade.
Luciana: Há relação entre a sociedade de consumo de massas e a obesidade?
Amanda: Possivelmente sim. Nunca houve tanta disponibilidade de alimentos e em porções cada vez maiores, para serem consumido sem limites. No Brasil, questões sociais também podem estar envolvidas no consumo desenfreado. Nos últimos 50 anos, o Brasil saltou da desnutrição à obesidade. Ao mesmo tempo, nos industrializamos, nos globalizamos e aderimos ao consumo de massas. Isso significa que as pessoas com mais de 30 anos, são filhas de uma geração que sofreu com algum grau de privação alimentar e, portanto, foram criadas para que consumissem tudo oferecido e para que não houvesse sobras e desperdícios. Tal comportamento, somado ao consumo de massas, pode sim estar relacionado ao aumento, cada vez maior, da obesidade em nosso país.
Luciana: Existe alimentação saudável? Qual seria de fato?
Amanda: Sim. Dentro do conceito Alimentação Saudável não há privações e sim equilíbrio. Todos nós podemos comer alimentos considerados de alto risco à saúde como um bom corte de picanha, apreciar uma boa sobremesa e tomar um cafezinho preto com açúcar. A questão é saber equilibrar o consumo e aprender a diminuir as porções. Não devemos comer sobremesas diariamente se não estivermos fazendo alguma atividade física, também não devemos adicionar açúcar ao café, se ao longo do dia tomarmos mais que cinco xícaras. Às delicias do dia a dia precisamos adicionar fontes importantes de fibras, presentes nas verduras e legumes. Atualmente aumentar o consumo de fibras é a única forma de melhorar o tempo de digestão, acelerado pelo refinamento dos alimentos. As frutas também são ricas em fibras e representam as principais fontes de vitaminas e minerais, fundamentais à manutenção da saúde. Pães, massas e arroz devem fazer parte de nossa alimentação cotidiana, só não podem estar somadas. Se for integral, muito melhor! As carnes são proteínas importantes e carreiam nutrientes essências à vida humana, como ferro. Elas devem estar presentes na alimentação saudável. Mas não precisa ser cortes bovinos diariamente, devemos aprender a intercalar diferentes tipos de carnes, comendo mais frango e peixe. O ovo também é uma opção muito saudável. Os leites e seus derivados representam as principais fontes de cálcio da dieta, e somente com a adequação desse nutriente é que conseguimos manter a nossa saúde óssea, assim o leite é para os Humanos! Para os intolerantes, versões sem lactose, para os gordinhos, versões desnatadas. Finalmente, os grãos, eles apresentam excelente valor nutricional e deveriam ter espaço cativo em nosso prato. Não me refiro ao grão de soja ou a quinoa, esses também são grãos nutritivos, mas deveríamos trazer de volta nosso bom e velho feijão.
Luciana: Qual sua experiência com os pacientes que fazem cirurgia bariátrica?
Amanda: Minha experiência clínica com esse grupo de pacientes talvez não expresse a realidade. Em geral, atendo os casos mal sucedidos, que após algum tempo voltaram a ganhar peso e precisam recomeçar com suas dietas e iniciar um tratamento adequado de reposição de vitaminas e minerais. Apesar do ganho de peso, raros são os casos em que o paciente recupera todo peso perdido. A cirurgia é uma medida drástica para quem precisar perder peso, muitas vezes é a única alternativa. Entretanto, ela não deve ser encarada como tratamento definitivo da obesidade, mas como o primeiro passo, para que grandes mudanças comportamentais aconteçam.
postada no segundo semestre de 2010