Devaneio
04/12/12 15:07Internauta: Tenho criado alucinações onde morro e ligo pra todos que amo dizendo o que sinto e que estou prestes a morrer. Sempre ligo pra a garota por quem estou apaixonado, para a minha mãe, minhas irmãs, e novamente para garota que “amo”. Por quê? Quero atenção? Minha paquera está tão difícil que acho que se eu morrer ela vai se preocupar? O que são essas minhas viagens?
Luciana: Saiba que o que chama de alucinações são, na verdade, devaneios. Histórias que fantasiamos acordados, frutos de nossa imaginação e desejo. Os devaneios, em geral, possuem uma estrutura semelhante a alguns alicerces de nossa personalidade e têm muito a dizer sobre nós.
Me parece que nos seus devaneios há busca por reconhecimento, algo como: “agora elas irão sentir o que é bom para tosse” e não haverá retorno. É como se fosse a hora de dizer a verdade e sair de cena, pois não se pode voltar atrás depois de morto. Um ato meio heroico, meio triste e meio covarde, que causa culpa nessas mulheres. Por que causar culpa? Por que punir as mulheres de sua vida?
No seu devaneio há pitadas de melancolia, de amores impossíveis e de dificuldades intransponíveis. Certo masoquismo misturado ao triunfo – mesmo que seja pela morte. Sugere medo de enfrentar diretamente pessoas e situações. Esse medo lhe causa uma sensação de minoridade e impotência. As mulheres te parecem superpoderosas. Há conflito, indignação e passividade agressiva em relação a elas nessa encenação de telefonar depois de morto. Pouca coisa pode machucar tanto como a morte de um familiar, filho, irmão ou namorado.
É comum fantasiarmos com a reação dos que mais amamos diante de nossa morte. As crianças são mestres nisso, mas cada um de nós constrói a narrativa de acordo com uma espécie de desenho do próprio desejo ou do inconsciente. Difícil mesmo é a razão alcançar os conceitos de infinito e de finitude!
VERSOS DE ENTRETER-SE
À vida falta uma parte
– seria o lado de fora –
pra que se visse passar
ao mesmo tempo que passa
e no final fosse apenas
um tempo de que se acorda
não um sono sem resposta.
À vida falta uma porta.
Ferreira Gullar, In.: Barulhos (1980-1987)
Poema escolhido por Ana Tanis, psicóloga, bacharel em letras e curadora de poesia desse blog.
Dica: o filme, Os outros, de Alejandro Amenábar, aborda de forma assustadora a fantasia universal de controlar o que acontece a nossa volta depois que estamos mortos.
Escrevi, em pequeno ensaio(“Orlando Gomes e a Teoria Pura do Direito”), de 2010, que estava voltando ao devaneio dos meus estudos e textos de 1952, 1953 e 1959(p.43), para demonstrar a possibilidade de uma conciliação entre concepções do Direito, aparentemente antagônicas(p.37). Leio, agora, embevecido, um texto admirável de Luciana Saddi sobre o “Devaneio”, com preciosas lições em torno da condição humana e um belo poema de Ferreira Gullar, escolhido pela sensibilidade de Ana Tanis. Atenciosamente, Emmanuel Matta.
Parece-me que o internauta faz uma interpretação bastante boa de seus devaneios. Sim, concordo com ele: quer atenção, deseja reconhecimento. Acontece que todos queremos atenção, todos desejamos reconhecimento, porém esperar que isso venha apenas de fora, é caminho certo para a desilusão, pois quando esperamos apenas dos outros, nunca é suficiente. Pergunto: você se reconhece? Reconhece suas qualidades, suas possibilidades, tem coragem para se apropriar do que é seu ? Digo isto porque muitas vezes ficamos pedindo aos outros coisas que só nós podemos fazer por nós mesmos.
Como diz Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso… Porque aprender a viver é que é o viver mesmo… Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa… O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”.
boa Sylvia!!!