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por Luciana Saddi

Perfil Luciana Saddi é psicanalista e escritora

Perfil completo

Poema para o dia dos mortos

Por Luciana Saddi
08/11/12 11:21

Como um presente

 

Teu aniversário, no escuro,

não se comemora.

 

Escusa de levar-te esta gravata.

Já não tens roupa, nem precisas.

Numa toalha no espaço há o jantar,

mas teu jantar é silêncio, tua fome não come.

 

Não mais te peço a mão enrugada

para beijar-lhe as veias grossas.

Nem procuro nos olhos estriados

aquela interrogação: está chegando?

 

Em verdade paraste de fazer anos.

Não envelheces. O último retrato

vale para sempre. És um homem cansado

mas fiel: carteira de identidade.

 

Tua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,

o desconforto deste chão. Mas sempre amaste

o duro, o relento, a falta. O frio sente-se

em mim que te visito. Em ti, a calma.

 

Como compraste calma? Não a tinhas.

Como aceitaste a noite? Madrugavas.

Teu cavalo corta o ar, guardo uma espora

de tua bota, um grito de teus lábios,

sinto em mim teu corpo cheio, tua faca,

tua pressa, teu estrondo… encadeados.

 

Mas teu segredo não descubro.

Não está nos papéis

do cofre. Nem nas casas que habitaste.

No casarão azul

vejo a fieira de quartos sem chave, ouço teu passo

noturno, teu pigarro, e sinto os bois

e sinto as tropas que levavas pela Mata

e sinto as eleições (teu desprezo) e sinto a Câmara

e passos na escada, que sobem,

e soldados que sobem, vermelhos,

e armas que te vão talvez matar,

mas que não ousam.

Vejo, no rio, uma canoa,

nela três homens.

“Inda que mal pergunte, o Coronel sabe nadar?

Porque esta canoa, louvado Deus, pode virar,

e sua criação nunca mais que o senhor há de encontrar.”

Tua mão saca do bolso uma coisa. Tua voz vai à frente.

“Coronel, me desculpe, não se pode caçoar?”

Vejo-te mais longe. Ficaste pequeno.

Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.

Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados,

da monarquia, da escravidão, da tirania familiar.

És bem frágil e a escola te engole.

Faria de ti talvez um farmacêutico ranzinza, um doutor confuso.

Para começar: uma dúzia de bolos!

Quem disse?

Entraste pela porta, saíste pela janela

– conheceu, seu mestre? – quem quiser que conte outra,

mas tu ganhavas o mundo e nele aprenderias tua sucinta gramática,

a mão do mundo pegaria de tua mão e desenharia tua letra firme,

o livro do mundo te entraria pelos olhos e te imprimiria sua completa e clara ciência,

mas não descubro teu segredo.

 

É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.

A identidade do sangue age como cadeia,

fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,

onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.

Por que ficar neste município, neste sobrenome?

Taras, doenças, dívidas; mal se respira no sótão.

Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,

passando por baixo de seus problemas e lavouras, de eterna agência do correio,

e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.

Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te, mas curioso:

já não estás, e te sinto,

não me falas, e te converso.

E tanto nos entendemos, no escuro,

no pó, no sono.

 

E pergunto teu segredo.

Não respondes. Não o tinhas.

Realmente não o tinhas, me enganavas?

Então aquele maravilhoso poder de abrir garrafas sem saca-rolha,

de desatar nós, atravessar rios a cavalo, assistir, sem chorar, morte de filho,

expulsar assombrações apenas com teu passo duro,

o gado que sumia e voltava, embora a peste varresse as fazendas,

o domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas, caixeiros, fiscais do governo, beatas,

[padres, médicos, mendigos, loucos mansos, loucos agitados, animais, coisas:

então não era segredo?

 

E tu que me dizes tanto

disso não me contas nada.

 

Perdoa a longa conversa.

Palavras tão poucas, antes!

É certo que intimidavas.

Guardavas talvez o amor

em tripla cerca de espinhos.

Já não precisas guardá-lo.

No escuro em que fazes anos,

no escuro,

é permitido sorrir.

Carlos Drummond de Andrade

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Comentários

  1. Anonima comentou em 08/11/12 at 16:12

    Diálogo com meu pai

    Obrigada
    por me ter feito sentir
    que não existe conquista
    não importa o que eu faça
    “Nem tente”
    nunca poderei conquistar ninguém

    pois que o amor é uma coisa
    que acontece entre as dobras
    de um corpo
    de um discurso
    talvez no pequeno silêncio entre
    as palavras

    Obrigada
    por me ter feito vi-ver
    que a vida é injusta
    e que vai tentar me surrar
    “Vira-te
    para te defenderes
    ou te devoro”
    – A vida é assim, né pai ?

    Obrigada
    por me ter feito sentir
    esse gosto de desilusão
    “Guarda a lembrança desse sabor
    pois em comparação
    tudo te será dulcíssimo”

    “Eu vou te dar referência
    e ela será amarga
    e tua dor será vazia, e sem sentido
    e nenhuma regra será clara
    ou segura
    nenhuma matemática vai te ajudar
    pensar não vai te ajudar
    a existir”
    – A vida é assim, né pai ?

    “Ah filha, e não pense que fiz isso pelo seu bem
    de caso pensado
    ou com boas intenções.
    Eu vivi pro meu desejo.
    Viva para o seu.
    Invente um pra você.

    “Eu sou como a vida
    aleatório
    sem destino
    sem intenção
    Uma folha que tomba, seca
    tem mais sentido que eu.
    Você aguenta, filha ?

    “Pegue o que quiser
    ou o que não quiser
    ou não pegue
    nada
    me importa.

    Já sou pó e lama
    misturados
    com meus próprios restos
    (aguente os teus)
    Lembre de mim assim,
    eu sou a vida.

    “Você aguenta não ser amada agora
    para se sentir amada depois ?
    Não ser notada
    para poder ser notada ?
    Você aguenta ser infeliz
    para poder ser feliz ?
    Você vai ter de se virar
    vai ter de achar alegria
    onde ela se esconder…
    Nada! Mentira ! Você vai ter de inventar a alegria.

    “Contente-se
    com as dobras
    com o silêncio entre as palavras
    banqueteie nas sobras
    e você terá a dulcíssima ilusão de que é feliz.

    “Se você sobreviver
    vai poder caminhar, numa ponte
    muito estreita
    muito longa
    sobre um precipício vazio
    sem regras
    e sem palavras.
    Boa sorte.
    teu pai”

    • Luciana Saddi comentou em 08/11/12 at 18:47

      adorei!

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