Poema para o dia dos mortos
08/11/12 11:21Como um presente
Teu aniversário, no escuro,
não se comemora.
Escusa de levar-te esta gravata.
Já não tens roupa, nem precisas.
Numa toalha no espaço há o jantar,
mas teu jantar é silêncio, tua fome não come.
Não mais te peço a mão enrugada
para beijar-lhe as veias grossas.
Nem procuro nos olhos estriados
aquela interrogação: está chegando?
Em verdade paraste de fazer anos.
Não envelheces. O último retrato
vale para sempre. És um homem cansado
mas fiel: carteira de identidade.
Tua imobilidade é perfeita. Embora a chuva,
o desconforto deste chão. Mas sempre amaste
o duro, o relento, a falta. O frio sente-se
em mim que te visito. Em ti, a calma.
Como compraste calma? Não a tinhas.
Como aceitaste a noite? Madrugavas.
Teu cavalo corta o ar, guardo uma espora
de tua bota, um grito de teus lábios,
sinto em mim teu corpo cheio, tua faca,
tua pressa, teu estrondo… encadeados.
Mas teu segredo não descubro.
Não está nos papéis
do cofre. Nem nas casas que habitaste.
No casarão azul
vejo a fieira de quartos sem chave, ouço teu passo
noturno, teu pigarro, e sinto os bois
e sinto as tropas que levavas pela Mata
e sinto as eleições (teu desprezo) e sinto a Câmara
e passos na escada, que sobem,
e soldados que sobem, vermelhos,
e armas que te vão talvez matar,
mas que não ousam.
Vejo, no rio, uma canoa,
nela três homens.
“Inda que mal pergunte, o Coronel sabe nadar?
Porque esta canoa, louvado Deus, pode virar,
e sua criação nunca mais que o senhor há de encontrar.”
Tua mão saca do bolso uma coisa. Tua voz vai à frente.
“Coronel, me desculpe, não se pode caçoar?”
Vejo-te mais longe. Ficaste pequeno.
Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.
Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados,
da monarquia, da escravidão, da tirania familiar.
És bem frágil e a escola te engole.
Faria de ti talvez um farmacêutico ranzinza, um doutor confuso.
Para começar: uma dúzia de bolos!
Quem disse?
Entraste pela porta, saíste pela janela
– conheceu, seu mestre? – quem quiser que conte outra,
mas tu ganhavas o mundo e nele aprenderias tua sucinta gramática,
a mão do mundo pegaria de tua mão e desenharia tua letra firme,
o livro do mundo te entraria pelos olhos e te imprimiria sua completa e clara ciência,
mas não descubro teu segredo.
É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.
A identidade do sangue age como cadeia,
fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,
onde o pão seja outro e não haja bens de família a preservar.
Por que ficar neste município, neste sobrenome?
Taras, doenças, dívidas; mal se respira no sótão.
Quisera abrir um buraco, varar o túnel, largar minha terra,
passando por baixo de seus problemas e lavouras, de eterna agência do correio,
e inaugurar novos antepassados em uma nova cidade.
Quisera abandonar-te, negar-te, fugir-te, mas curioso:
já não estás, e te sinto,
não me falas, e te converso.
E tanto nos entendemos, no escuro,
no pó, no sono.
E pergunto teu segredo.
Não respondes. Não o tinhas.
Realmente não o tinhas, me enganavas?
Então aquele maravilhoso poder de abrir garrafas sem saca-rolha,
de desatar nós, atravessar rios a cavalo, assistir, sem chorar, morte de filho,
expulsar assombrações apenas com teu passo duro,
o gado que sumia e voltava, embora a peste varresse as fazendas,
o domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas, caixeiros, fiscais do governo, beatas,
[padres, médicos, mendigos, loucos mansos, loucos agitados, animais, coisas:
então não era segredo?
E tu que me dizes tanto
disso não me contas nada.
Perdoa a longa conversa.
Palavras tão poucas, antes!
É certo que intimidavas.
Guardavas talvez o amor
em tripla cerca de espinhos.
Já não precisas guardá-lo.
No escuro em que fazes anos,
no escuro,
é permitido sorrir.
Carlos Drummond de Andrade
Diálogo com meu pai
Obrigada
por me ter feito sentir
que não existe conquista
não importa o que eu faça
“Nem tente”
nunca poderei conquistar ninguém
pois que o amor é uma coisa
que acontece entre as dobras
de um corpo
de um discurso
talvez no pequeno silêncio entre
as palavras
Obrigada
por me ter feito vi-ver
que a vida é injusta
e que vai tentar me surrar
“Vira-te
para te defenderes
ou te devoro”
– A vida é assim, né pai ?
Obrigada
por me ter feito sentir
esse gosto de desilusão
“Guarda a lembrança desse sabor
pois em comparação
tudo te será dulcíssimo”
“Eu vou te dar referência
e ela será amarga
e tua dor será vazia, e sem sentido
e nenhuma regra será clara
ou segura
nenhuma matemática vai te ajudar
pensar não vai te ajudar
a existir”
– A vida é assim, né pai ?
“Ah filha, e não pense que fiz isso pelo seu bem
de caso pensado
ou com boas intenções.
Eu vivi pro meu desejo.
Viva para o seu.
Invente um pra você.
“Eu sou como a vida
aleatório
sem destino
sem intenção
Uma folha que tomba, seca
tem mais sentido que eu.
Você aguenta, filha ?
“Pegue o que quiser
ou o que não quiser
ou não pegue
nada
me importa.
Já sou pó e lama
misturados
com meus próprios restos
(aguente os teus)
Lembre de mim assim,
eu sou a vida.
“Você aguenta não ser amada agora
para se sentir amada depois ?
Não ser notada
para poder ser notada ?
Você aguenta ser infeliz
para poder ser feliz ?
Você vai ter de se virar
vai ter de achar alegria
onde ela se esconder…
Nada! Mentira ! Você vai ter de inventar a alegria.
“Contente-se
com as dobras
com o silêncio entre as palavras
banqueteie nas sobras
e você terá a dulcíssima ilusão de que é feliz.
“Se você sobreviver
vai poder caminhar, numa ponte
muito estreita
muito longa
sobre um precipício vazio
sem regras
e sem palavras.
Boa sorte.
teu pai”
adorei!