A roupa
31/10/12 11:36‘Ela precisa de uma roupa’, dizia o cunhado.
‘Uma roupa para quê?’ Falava a irmã aflita. ‘Pode enterrar pelada, tanto faz, já morreu mesmo’.
‘Pelada não pode, não. Onde já se viu, ninguém é enterrado pelado, isso é desumano’, retrucava ele.
Ela cansada dizia: ‘não vão pôr flor? Põe flor, ninguém vai ver, tanto faz.’
‘E precisa de sapato, também.’
‘Sapato? Onde já se viu, morto não anda. Quem foi que inventou uma desumanidade dessas? Quem disse que morto é vestido, maquiado, tratado e penteado? Que venha aqui, quero falar com essa gente que não entende que ela morreu e morto não anda, não tem sexo e nem vaidade.’
A família chegou dizendo o contrário, era bom ter roupa, sapato, batom e muita dignidade; porque até em assunto de morte há moda e costumes. Vencida, por vencida mesmo a irmã não se dava, mas consentiu, era minoria, não tinha a cultura da morte, fazer o quê?
Penteada, maquiada, vestida e calçada, melhor não ficava, porque a morte não podia ser disfarçada com nenhuma artimanha de mulher fogosa. Morta estava, morta continuava. No caixão um monte de rosas, nem dava para ver o vestido e o sapato. Qual o sentido de um morto bem vestido? Grande coisa…E veio o problema: o caixão era pura desolação, era pequeno, a morta era muito baixa. Como é que ninguém pensou nisso? Caixão pequeno dá má impressão, tanto tempo perdido com roupa, sapato, problema dos vivos, que nem tempo tiveram para ver o problema dos mortos.
Ali estava um caixãozinho quase infantil, uma pérola, um objeto ridículo desfigurando a morta, roubando-lhe a natural dignidade de morta. Quem levaria a sério, quem choraria, quem sentiria dor por algo extremamente ridículo? Era só olhar, uma olhadela, nem precisava pousar os olhos longamente sobre a cena, todos davam risadas. As rosas até o pescoço, sufocando e apertando ainda mais o caixãozinho.
Um morto não pode ser bizarro, tamanho de criança e rosto de mulher, um caixão não pode se parecer com uma gargantilha muito grande e apertada, dessas que fazem saltar a banha do pescoço. Descalça, pelada, sim. Apertada em sua própria altura, não. Deviam ter pensado nisso, um caixão top model, disfarçando a pouca altura da morta, já que nem mesmo os saltos altos dissimulavam o encolhimento.
Uma figura insólita, dava pena, coitadinha, nunca tinha sido tão humilhada, tamanho de criança, rosto de mulher. A vida havia disfarçado o seu aspecto circense, nunca havia sido tão baixa, tão anã, tão desengonçada. Era uma mulher graciosa, sensual de verdade, difícil acreditar, agora, quando a vemos enterrada até o pescoço num caixão luxuoso, que um dia foi capaz de despertar mais do que risadas.
Como era possível encolher assim, tão de repente? Como é que a vida havia conseguido a proeza de disfarçar tão bem esse aleijamento, hoje, no dia de sua morte, tão evidente? Será que a morte tem a capacidade de, ainda por cima, nos desnudar tão friamente? Como se não bastasse apenas morrer, ainda somos revelados, sem proteção, em nosso mais miserável defeito. Transforma-nos em uma aberração, justo no dia que não podemos, de forma alguma, nem correr, nem esconder. Será que é esse o motivo de vestir a morte?
O desespero tomou conta da irmã. Pensava em sua morte, em sua altura, em sua futura pele de morta, nas espinhas que poderiam aparecer e até nas rugas, que de certo um dia teria se o tempo lhe permitisse o luxo de viver. E quem se preocuparia com sua aparência de morta? Sem irmã, sem espelho e sem poder fazer nada.
Decerto haveria um cunhado sobrando em algum lugar, um cunhado é um cunhado, são os tipos que se preocupam com as roupas e os sapatos das pessoas que morrem, querem pôr flores e velas, chamar os amigos. Os cunhados gostam daquelas coroas de flores com dizeres impressionantes, grandiosos e esquecíveis. Quem sabe um desses, num lampejo de lucidez, poderia compreender a situação e comprar um caixão mais comprido, menos enfeitado, que ornasse melhor com sua pele, seu tipo físico e mesmo com seu gosto?
Uma mulher sofisticada e esnobe merece um tipo de caixão, outra mais sofisticada ainda merece outro tipo e assim por diante. Não basta ser de luxo, boa madeira e tudo mais, aliás isso é besteira, tem que ter design, estilo, pode até ser bem vagabundo que ninguém nota. O negócio é realçar as qualidades da morta ou do morto. Quadrado. Clubber. Fashion. Hippie. Intelectual. Redondo, tipo cama de motel. Com a toalha do lavabo combinando, sabonete combinando, um belo composê na decoração do velório. Manequim para caixão, revista de moda com as últimas tendências e tudo o mais para sua morte inesquecível. Morra feliz, morra com estilo! Não seja mais um morto sem graça neste mundo, lute pelo que é seu, até o fim — que slogan, não?
Enquanto o sonho da bela morta não se concretizava era preciso salvar a morta anã daquela vergonha horrorosa, da crueza ontológica em que fora arremessada. Ela que naquele instante representava todos os mortos que sofreram essa brutal alienação em suas personalidades após a morte, bem que poderia com toda a justiça se levantar, fazer discurso, sair de dentro daquele horrível objeto, pedir ordem no recinto, clamar por dignidade, por piedade e se transformar em líder do movimento pela morte com estilo e decência.
O cunhado veria quão tolo conseguira ser, pedindo sapato e vestido. A família saberia de uma só vez que a irmã estava certa, não havia mesmo moda e costume dos vivos que fosse útil para os mortos. E a morta, de tão humilhada, se levantaria como sempre havia se levantado contra as injustiças e toda aquela farsa ridícula teria fim. Era esperar, esperar, esperar…e um pouco mais esperar. Esperar para reaver o sentido do mundo, a ordem natural da vida, reverter o caos. Em poucos minutos a cena dantesca, sua irmã morta, num caixão anão, seria desfeita. Esperar. Ela quase via a respiração, os leves movimentos, as flores se mexendo, um som familiar…logo desapareceram. E era então, esperar…
Acontece que não acontecia nada, nadinha, além de tudo que já havia acontecido. Quer dizer, acontecer até que acontecia, mas não era no sentido esperado. Uma ponte de esperança que ia e vinha foi sendo desfeita, as idas cada vez mais lentas, as voltas mais tortuosas. E o frio se impôs, mandou para longe o jogo, as disputas e a razão. Um frio intenso, de arrepiar o coração, não havia mais o que fazer, sobrou a dor, nua e descalça.
do livro: O amor leva a um liquidificador (ed. Casa do Psicólogo).
Estou com problemas serios com alienacao parental mas fui na promotora e ela me disse que nao e considerado crime. E verdade que a alienacao parentao nao e mais considerado crime? Me ajude por favor pois meu caso e muito serio. Nao deixam eu ter contato com o meu filho e nem mesmo a escola.
Obrigada
Elza maria
é crime, sim!