A INFÂNCIA DE ADÃO e outras ficções freudianas
24/10/12 10:30DA INVEJA ENVERGONHADA
de Fabio Herrmann (Editora Casa do Psicólogo, 2002.)
A noção psicanalítica de afeto é basicamente quantitativa, resumindo-se suas qualidades em prazer e desprazer. Já o domínio dos sentimentos é qualitativo: cada sentimento — alegria ou bondade, nostalgia ou ressentimento — cria um mundo muito próprio, onde as coisas mesmas da realidade se ordenam e se transformam segundo suas regras. A casa de minha infância, de que me lembro com saudade, não é a mesma casa onde se alimentou talvez meu ressentimento edipiano ou onde experimentei certa perda irreparável. Nossos sonhos sabem exprimir este fato com eloqüência: os objetos que povoam uma casa, a própria casa e o espaço onde esta se situa dispõem-se segundo sua arquitetura sentimental.
A separação estrita que opõe razão a sentimento, por seu lado, nasce do fosso aberto entre humanidade e natureza, no terreno central da civilização cristã. O homem puramente racional e o cultivo de sentimentos ditos positivos, como se sabe, fazem parte do ideal abstrato de nossa cultura. Todavia, o corolário negativo deste ideal tem ainda maior interesse. Por exclusão, forma-se um resíduo de sentimentos reputados maus e nega-se não apenas racionalidade, mas até mesmo lógica interna aos sentimentos. Ademais, os sentimentos são considerados fatos internos, perdendo-se a riqueza da visão do quotidiano, reputada primitiva, que considera ser a realidade construída por sentimentos e emoções.
São, ao todo, quatro disjunções fortemente interligadas as que balizam a psicologia dos sentimentos: natureza X humanidade, razão X sentimentos (os sentimentos, as afecções da alma afetam a razão, logo, nela não se incluem), sentimentos bons X sentimentos maus, sentimentos X realidade. O surgimento da Psicanálise é, com certeza, um ponto de virada em nossa concepção do homem, no tocante à sua vida afetiva. Em princípio, a Psicanálise deveria criticar e superar essas quatro disjunções. Nosso homem é inteiramente natural e cultural ao mesmo tempo, é corpo que se transformou em psiquismo sem perder seu caráter orgânico, ou, ainda melhor, é psique encarnada. Negamos a oposição entre razão e sentimentos: o sentimento para a Psicanálise é uma forma lógica, bem como a razão é essencialmente emocional. O juízo moral, no que diz respeito aos sentimentos, é a rigor secundário para a Psicanálise. Por fim, é inconcebível qualquer descrição da realidade que ponha de parte sua natureza intrinsecamente emocional; realidade é representação e não existe representação neutra, sem carga afetiva. Para o psicanalista, como para o sonho, uma casa feita só de tijolos e madeira, sem estrutura emocional a sustentá-la, literalmente não pára em pé…
Isto, em princípio. Ocorre que, não obstante sua vocação crítica, o psicanalista é também fruto da árvore histórica das idéias de sua cultura. Assim, tendemos constantemente a oscilar entre a posição crítica e uma aceitação dos valores consensuais. Aqui, parece-me interessante destacar a terceira disjunção, a de caráter valorativo. Que a inveja nos sirva de guia.
No quarto século depois de Cristo, Sto. Agostinho escreve no Livro 1 primeiro de suas Confissões: “a fraqueza dos membros infantis é inocente, mas não a alma das crianças… vi uma, cheia de inveja, que ainda não falava, mas já olhava, pálida e colérica, seu irmãozinho mamar”. Está dado o tom do julgamento moral dos mil anos seguintes pelo menos. A inveja é má e é primária, constitucional no mais forte sentido do termo, pois vem com o pecado original. Giotto, na capela Scrovegni, a pintará como uma mulher de cuja boca sai uma serpente que lhe entra pelos olhos, parecendo acrescentar que, ao se passar do infante ao adulto, a palavra não remedia a situação, antes transtorna a própria percepção: a palavra invejosa retorna sobre o sujeito, cegando-o, envenenando seu olhar, infundindo-lhe um olho mau. Teremos de esperar por Espinosa, treze séculos depois de Agostinho, para escutar que “as afecções de ódio, de cólera, de inveja etc. resultam da Natureza” e não de um vício desta. Assim, quando na proposição XXIII, do livro terceiro da Ética, ele define a inveja, já o faz como um jogo de linhas de força, “ao modo dos geômetras”: “A inveja (Invidia) é o ódio na medida que afeta o homem de tal maneira que ele se entristece com a felicidade de outrem e, ao contrário, experimenta contentamento com o mal de outrem.” Do século IV ao XVII, a inveja continua perfeitamente detestável, porém, ocorreu uma mudança. O mal da inveja, que era um vício — Prognóstico de vícios, leva por título o capítulo citado das Confissões —, passa a ser natural e seu dano já não é moral, e sim uma perda de perfeição, uma queda na potência natural (potentia).
Digamos que, do ponto de vista valorativo, os psicanalistas geralmente oscilam entre Agostinho e Espinosa, mas não os superam — por simplicidade, restrinjamo-nos a esses dois grandes precursores da psicologia do mundo judaico-cristão. Agostinho mergulha no pântano afetivo da interioridade, para a depurar, portanto condena moralmente os “sentimentos maus”. Espinosa aproxima-se exteriormente do afeto, armado da razão geométrica, sua condenação é, por assim dizer, funcional. No fundo, trata-se de duas psicologias complementares: uma, intuitiva e marinha, a outra, racional e astronômica. Quando nós, psicanalistas, discutimos os sentimentos, procuramos evitar qualquer juízo manifestamente moral, mas este se transforma numa variante do juízo funcional espinosista. A inveja é prejudicial — já não dizemos errada ou pecaminosa —, como prejudiciais são ciúme e vergonha, por exemplo. O projeto agostiniano de depuração, por conseguinte, não foi abandonado, converteu-se em busca de “melhor rendimento psíquico”.
A aproximação psicanalítica aos sentimentos tende a situá-los numa esfera intermediária entre a psicologia e a psicopatologia. Para nós, não chegam a ser “vícios da natureza”, certamente, mas tampouco os estudamos como formas intrínsecas da construção da realidade. Os sentimentos parecem ser, antes de tudo, desvios subjetivos da apreensão do mundo. Por isso, talvez, sejam muito mais freqüentes os trabalhos psicanalíticos sobre os sentimentos social e individualmente recusados, vizinhos da patologia. Quase todos os sentimentos propostos para a discussão em nossos Congressos visam a essa classe. É raro ver analistas discutindo a alegria ou a bondade, por exemplo. Nisto seguimos a tradição que deu forma a nosso juízo moral, conquanto transformado este em juízo diagnóstico.
Reconhecer as fontes de nossos valores diagnósticos a respeito dos sentimentos é da maior importância para a prática psicanalítica. Aliás, reconhecer as fontes culturais de qualquer das nossas teorias pode evitar sua falsa naturalização e a conseqüente reificação da clínica. Tomemos um exemplo hipotético, sempre apoiados no valor negativo da inveja. Suponhamos que um psicanalista se depare com o mito da revolta dos anjos, movidos pela inveja contra o Criador. Concebivelmente, sua primeira reação deveria ser de espanto. “É preocupante”, quase o escutamos pensar, “que coincidam um mito de origem de minha cultura e certa teoria que venho desenvolvendo. Cumpre descobrir que campo cultural as determina e rompê-lo, a fim de descobrir quais regras inconscientes nele operam”. É provável que logo se desse conta de que a noção de pecado, que habita o escritor bíblico, também é atuante em seu pensamento teórico. Contudo, sua atitude costuma ser a oposta. Não é infreqüente pensar, nesse caso, que o mito endossa a teoria, confirmando que a inveja é mesmo o lado mau da natureza humana, e quem sabe da natureza angélica, pois se até o Antigo Testamento o confirma… Mais ou menos como o físico que usasse o mito da Criação, no Gênesis, para corroborar a teoria do Big Bang. A esta altura, talvez alguém pensasse em replicar: “Ora, os mitos desconhecem a física, mas dão testemunho do psiquismo humano, a comparação é injusta.” Certo. Mitos, porém, são amostras da psique, podemos aprender de sua interpretação, que mostra a lógica emocional que os concebeu. Outra coisa é tomar as afirmações dos mitos como lições de sabedoria psicanalítica. Assim procedendo, nossas teorias e nossa clínica correm sério risco de se tornarem míticas também, em muito pouco tempo, e depois, lendárias. “Conta-se que, no Século XX, havia um projeto científico muito popular, cujos adeptos acreditavam que os meninos querem matar seu pai, para casar com a mãe…”
Um fragmento póstumo de Nietzsche, intitulado A disputa homérica, pode talvez lançar alguma luz sobre a naturalização de valores culturais, principalmente se recordarmos como a invenção freudiana da Psicanálise mergulha suas raízes na cultura grega. “Nada distingue o mundo grego do nosso tanto quanto o juízo a respeito dos conceitos éticos individuais, como Éris (discórdia) e inveja…” — observa Nietzsche. “O grego é invejoso, e não considera tal qualidade vergonhosa, mas como dom de uma deidade benéfica”, a boa Éris, de que fala Hesíodo, aquela que através “do ciúme, ódio e inveja, impulsiona os homens à atividade: não a de destruição, mas a de disputa”. E completa: “que abismo de juízo ético separa-os de nós!”
Qual, pois, a diferença entre aqueles gregos que choravam e uivavam de inveja, sem a menor vergonha, e nossa concepção da inveja como um derivado do pecado original? Não é difícil responder. A inveja de que nos fala Nietzsche conduz à disputa pela excelência, ao combate singular entre os melhores e não é isenta de admiração. Sobretudo, nunca diminui o adversário, antes o eleva, para elevar-se com ele. Em nosso mundo, porém, a recusa de certos sentimentos produz uma estranha composição. A nossa é uma inveja envergonhada. Esta, que não se pode declarar ao outro nem mesmo reconhecer no próprio íntimo, leva, ao contrário, à difamação, à conspiração da mediocridade, à união dos fracos contra o pensamento forte. Inveja ou vergonha são sentimentos perfeitamente aceitáveis — o primeiro impulsiona a disputa pela primazia e pela perfeição, o segundo leva a evitar condutas repreensíveis por aqueles que se admira. A combinação dos dois sentimentos é que é doentia, do ponto de vista diagnóstico. Seria preciso refletir sobre a força da inveja envergonhada no seio das instituições psicanalíticas e em como nossas próprias teorias acabam por sustentá-la, ao defender sentimentos falsamente positivos.
perfect!
Modo geral achei o texto instigante. “A inveja é o ódio na medida que afeta o homem de tal maneira que ele se entristece com a felicidade de outrem e, ao contrário, experimenta contentamento com o mal de outrem.” Por essa definição e por outras a inveja não é salutar, transformá-la em algo positivo penso que deixaria de ser INVEJA e, seria outra coisa.
há uma ambiguidade na ideia de inveja para os gregos, uma inveja misturada com admiracao, penso eu.Vc pode querer destruir o que o outro possue (essa é nocao corrente de inveja na psicanalise), mas pode querer conquistar para si o que inveja/deseja no outro. É o que popularmente chamamos de inveja do bem!