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por Luciana Saddi

Perfil Luciana Saddi é psicanalista e escritora

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O siri do restaurante chinês

Por Luciana Saddi
24/05/12 12:54

 

Já faz muito tempo que nós ocidentais comemos com talheres. No início apenas a faca, muito depois a colher,  os garfos, vindos de Bizâncio no século XI, só foram totalmente integrados à Europa no século XVIII. Os orientais comem com palitos. Tanto os talheres quanto os palitinhos são uma marca distintiva de civilização, já que nenhum de nós mete a mão diretamente na comida sob  pena de regredir aos tempos imemoriais em que comíamos cru. Porque muito antes dos talheres, antes mesmo de comermos cozido, matávamos e comíamos imediatamente qualquer coisa que se mexesse. Pois é, o Homem já foi um bicho desses. Depois melhorou muito, aprendeu a cozinhar, salgar,  temperar,  juntar vários alimentos criando outros cada vez mais saborosos e a comer com intermediação. O resultado final de alguns milhares de anos de evolução em técnicas de cocção e culinária é, sem dúvida nenhuma, o siri picante do restaurante chinês.

Gengibre e pimenta, dedo de moça, um pouquinho de mel, o suficiente para dar liga aos ingredientes, suavizar o ardor da pimenta e equilibrar o esquisito sabor do gengibre. Na boca cada elemento é destacado e ao mesmo tempo unido com o sabor redobrado. O molho espesso, cinza escuro com esparsas pintinhas vermelhas, escorrega dentro da gente e gruda no siri. Praticamente não há palavras para descrever o sabor do siri do restaurante chinês.

O siri é um animal estranho, difícil imaginar como foi que o Homem descobriu que aquilo não era uma pedra com pernas, que havia lá dentro uma carninha branca e macia, muito saborosa. Quando visto na praia não abre imediatamente o apetite de ninguém, embora não seja repulsivo, não é nada atraente. Só não parece pré-histórico porque é pequeno demais, mas carrega em seu bojo um dos grandes desafios da humanidade: como comer um siri e assim mesmo ser civilizado?

É preciso coragem, a visão é desagradável, o toque duro e doído. No restaurante chinês o siri vem inteiro e muito mal quebrado, não há martelos, nem babadores. Para começar pegamos com dois dedinhos, delicadamente, uma patinha e retiramos um fragmento de casquinha de siri; abre-se uma pequena janela, vislumbra-se a carne branca, procuramos o garfo, espetamos no buraquinho e puxamos, as mãos estão ligeiramente sujas de molho que vai sendo transferido lentamente ao garfo, que não serve para puxar a carne por mais que se tente. O garfo fica melado, escorrega da mão, cai no colo, suja a roupa, vai para o chão. Com a outra mão seguramos o siri, puxamos com a ponta dos dedos a casquinha que é dura e machuca a gente ao se abrir, e revela um pedacinho de carne que é retirado com a mão e levado à boca. O trabalho é imediatamente recompensado. O apetite cresce.

Mas há falhas estruturais na casca das patas do siri, a paciência vai se esgotando, a boca passa a ser uma opção, não uma opção de caso pensado, uma opção de imediato, imediatamente a pata de siri está em sua boca, o movimento é automático e proporcional à frustração e à fome. As mãos ficam verdadeiramente lambuzadas de molho pastoso e perfumado. É de lamber os beiços, passar a língua e sorver cada pedacinho de carne encharcada. Com os dentes puxamos alguns fragmentos de casca, a separamos da pouca carne das patinhas e chupamos.

Agora é o corpo do siri, com tantos murinhos dentro, feitos de um tipo fino de cartilagem, que está sendo observado, é preciso algum tipo de estratégia, a fome aperta, como alcançar a carne escondida? Enfia-se a faca com a mão direita recém quase limpa por um guardanapo de papel que insiste em permanecer com alguns pedaços grudados, faz-se um furo. Enfia-se um dedo, não cabe, o siri do restaurante chinês é verdadeiramente pequeno. Leva-se à boca, enfia-se a língua, ela entra, com os dentes se arrebentam  aquelas finas paredes, a boca se perde.

Chupamos o corpinho do siri com gosto, com a língua e com os dentes. Cada vez mais a boca entra, se perde, sorve e engole alguma coisa selvagem. Seu rosto está sujo, suas mãos imundas, o céu da boca pica e você está quente, com fome e cansada.  Um verdadeiro siri picante do restaurante chinês. Ninguém olha? Não importa, já que a coisa toda se passa entre você e o siri. Sem palito e sem talher.

O amor é assim mesmo, gengibre e pimenta, um pouco de mel para dar liga e um bicho muito estranho, com carne branca, macia e difícil. Para comê-lo é preciso meter as mãos e a boca, sem pudor e sem medo.

 

Do Livro, O amor leva a um liquidificador, de Luciana Saddi (Ed. Casa do Psicólogo).

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Comentários

  1. Jorge Xerxes comentou em 24/05/12 at 15:35

    Gostei do Texto!

    “O resultado final de alguns milhares de anos de evolução em técnicas de cocção e culinária é, sem dúvida nenhuma, o siri picante do restaurante chinês.”

    “Para comê-lo é preciso meter as mãos e a boca, sem pudor e sem medo.”

    Ourobouros!

    • Luciana Saddi comentou em 24/05/12 at 17:05

      obrigada, nao esqueci dos seus, to numa semana complicada, semana que vem terei mais tempo!

    • fagnerjr comentou em 25/05/12 at 15:43

      Tbm gostei Xerxes da parte do >
      “Para comê-lo é preciso meter as mãos e a boca, sem pudor e sem medo.” (me fez lembrar outras coisas mas nao é o caso agora)
      mandou muito Srta Saddi…gosto de seus textos mas desta vez tu fez uma verdadeira poesia com a arte de degustar um belo e dificil SIRI…

      parabens e bom fds

  2. Cristiane Soares comentou em 26/05/12 at 19:30

    Adoro a maneira como você escreve!
    No fim, o amor é isso mesmo, algo que, por mais que nos lambuze, nunca nos satisfaz…

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