Durante o século XX o mundo acabou
20/03/12 17:19
“Durante o século XX, pode-se dizer que o mundo acabou. Tangenciamos a completa aniquilação nuclear, beiramos o nada instrumentado pela cultura tecnológica. E, se essa aniquilação não se deu – razão de ainda estarmos nós aqui a escrever e psicanalisar -, houve um trauma, ao que tudo indica. É eticamente impensável qualquer jogo em que o fim da humanidade entre como aposta, sejam quais forem as probabilidades, e a proximidade do impensável cobra sempre um alto preço do psiquismo. O primeiro sinal sugestivo de um trauma cultural em larga escala terá sido, quem sabe, o próprio esquecimento da quase destruição do homem, ao longo da guerra fria. Já ninguém fala nisso, há anos. Em lugar do impensável silenciado, ou reprimido, repetimo-lo por partes. Voltamos constantemente a discutir a 2ª Guerra, mas deixando de lado a catástrofe atômica; espantamo-nos com a ascensão dos totalitarismos, mas sem questionar em igual medida a ideologia oposta, o capitalismo metastático; não cessamos de debater o holocausto do povo judeu, representante parcial ou deslocado daquele do povo humano, impronunciável este último. Certos fenômenos globais, ou seja, os que envolvem a Terra inteira, mimetizam o único ato radicalmente global da história: a destruição da humanidade. … O planeta não foi destruído, enfim. Porém, no século XX, um mundo acabou, o mundo da substância social, dos projetos deliberados pelo povo e da racionalidade discursiva. Uma nova forma de representação, por imagem, substituiu o pensamento tradicional. A realidade mostrou-se escancaradamente fabricada e o homem impotente para a determinar de maneira racional. O real humano tem-se declarado psíquico, no sentido psicanalítico do termo inconsciente.”
Fabio Herrmann, Introdução à Teoria dos Campos (Ed. Casa do Psicólogo).
Lembro-me da crise dos misseis em Cuba em 1962. Eu era adolescente. Em nenhum momento da Guerra Fria o mundo esteve tão perto de um conflito nuclear fatal(pode-se ter uma idéia desse episódio assistindo o ótimo filme, dirigido por Roger Donaldson, “Os treze dias que abalaram o mundo”. Eu ouvia o noticiario na época; fiquei angustiado; mas não me lembro de qualquer pessoa ao meu lado ou na escola preocupada com o que acontecia.
A segunda Guerra Mundial e o Holocausto são mencionados sempre; afinal, foram cinquenta milhões de mortos, a Europa destruída; ainda assim, (nasci depois da guerra) na minha família, os mais velhos, só se referiam a Guerra, pela escassez de alguns itens, racionados enquanto ela durou.Não creio também que avanços tecnológicos mudem — senão perifericamente — a vida das pessoas. É sempre, como alguém disse: “uma pequena humanidade vivendo o seu banal cotidiano”. No consultório de vocês psicoterapeutas, aparecem pessoas angustiadas com macro questões? Não, elas jamais param de olhar o próprio umbigo, de pensar em como ganhar mais dinheiro. São , do ponto de vista psicológico, crianças; vítimas ou algozes, de um egoísmo infantil.
Edgard
Calculando friamente, o Sec. XX foi tenebroso e no mesmo tempo, um marco no perfil da humanidade. Talvez, no futuro, dividamos o tempo em “de Cristo ao Sec.XX; e, depois do Sec.XX – porque se repararmos nos atuais acontecimentos, a própria natureza está selecionando a evolução, mostrando ao ser humano que é preciso ser melhor. Leva tempo; mas, “o joio será separado do trigo”.
Edgard e Onésio,
Individualmente os sofrimentos estao sempre se enrolando nos nossos umbigos. Mas esse texto fala de um trauma na Cultura e de uma psique que a ela corresponde. E de formas culturais de defesa do trauma.
Ufa! Que alivio!. Obrigado, Luciana.
Luciana, quando te mando um comentario, um texto é porque acredito que ele possua alguma informação,que ele possa sucitar a necessidade de uma resposta — às vezes de uma discordância; só quando sinto essas possibilidades te mando. Se menciono a Crise dos mísseis de Cuba ( mandei junto a dica de um filme) é porque ela (a crise) foi um fato histórico dentro da Guerra Fria; portanto dá a esse assunto, no teu blog, um dado concreto, que as pessoas podem facilmente verificar. Quando afirmei que a grande maioria dos seres humanos não vai além, em suas preocupações, de um âmbito pessoal muito restrito, fiz junto da pergunta, se você, como terapeuta, recebeu em seu consultório alguém angustiado com macro questões; com algo que fosse além do mais restrito plano pessoal.
Você é uma pessoa conhecida, o teu blog tem seguidores.Imagino que você quer que ele seja, cada vez mais, útil, no sentido público do termo. Assim, eu te pergunto: o que é “Teoria dos Campos”,” trauma da cultura” “o nada instrumentado pela cultura tecnológica”, “nova forma de representação por imagem”, “formas culturais de defesa do trauma” etc.? Falta muito esclarecimento, exemplos. Ou tudo torna-se esotérico; assunto só para iniciados.
Edgard
Por falar em iniciados, pergunto ao sr. Onesio: alívio em relação a que?
Alguns assuntos sao dificeis, procuro deixa-los mais palatáveis, parece que nao consegui. Tentarei melhorar num próximo post, explicitar a relacao entre psique individual e psique do Real.
Desculpa-me sr. Edgar. Cada um versificula por onde entende. A Luciana escreveu, manifestou, e eu entendo.
Luciana, sim, alguns assuntos são difíceis. Lembro-me que uma vez mencionei num e-mail a você, a angústia de Otto Rank, que em certo momento pensou em pedir a Lou Salomé que reescrevesse toda a sua obra, pois reconhecia que escrevia de uma forma obscura.Otto Rank, com vasta cultura, dominando inúmeras areas de conhecimento, foi do seleto e brilhante primeiro grupo de psicanalistas, formado em torno de Freud.
Li alguma coisa de Jung, sobre quem foi dito que, quanto ao estilo, clareava para em seguida obscurecer.Já Freud, o pai de toda psicologia moderna, escrevia de forma clara, expressiva, dizem que por ter sólida formação literária.
De todo jeito, é preciso humildade, reverência, diante do idioma, dos idiomas, das normas, dos significados de cada termo, cada palavra, de cada campo de conhecimento — mesmo quando houver a necessidade de contrariá-los.
Edgard