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por Luciana Saddi

Perfil Luciana Saddi é psicanalista e escritora

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A mentalidade de dieta 1

Por Luciana Saddi
23/02/12 09:55

 Os tratamentos convencionais para os problemas alimentares, baseados no controle da alimentação do paciente, visam à contenção dos sintomas e à construção de um corpo idealizado, não reconhecendo que é exatamente desse problema que o paciente sofre. Tendem a reforçar o problema da perda de autonomia, cerne dos problemas alimentares, já que reproduzem os mesmos meios e objetivos que fazem o paciente adoecer. E, muitas vezes, levam-no a um uso fóbico, religioso e rígido da alimentação, das rotinas e dos cuidados corporais, que nos remete a um corpo quantificado num tipo de funcionamento que iguala saúde a máquina trabalhando em perfeito estado. A perda ou falta de autonomia alimentar é conseqüência e causa imediata dessa problemática, que, em última instância, leva a um tipo particular de claustro e colabora, muito, na epidemia da obesidade.

 A mentalidade de dieta atravessa nossa experiência com a alimentação. A maioria de nós já nem sabe mais o que gosta de comer, o que é e quando sente fome ou saciedade, sendo esses os sinais internos básicos da alimentação. Nossa relação com a comida sofreu enorme perturbação nas últimas décadas. Perturbação advinda da regulação científica, dos ideais de beleza, do crescimento da produção industrial dos alimentos, da indústria de cosméticos, da indústria farmacêutica e da massificação, enfim, da cultura de forma geral.

 A mentalidade de dieta é causa e conseqüência da falta de autonomia alimentar. É produzida socialmente; está internalizada e regula as relações do homem com sua alimentação e com seu corpo. Perdemos a “inocência” ao comer. Porque comemos, cada vez mais, de forma externalizada – orientados pela ciência e pela indústria. O sujeito psíquico que foi expulso do homem expeliu também e, inclusive, sua capacidade de julgar coisas bastante triviais, como a escolha do alimento que se tem vontade de comer e que matará a fome com prazer. Perdemos nossa capacidade de saborear os alimentos, de saber a hora de parar de comer, de saber quando se tem fome, de escolher os alimentos por livre e espontânea vontade. Comer se tornou um ato desconectado dos sinais internos que deveriam regulá-lo: sinais de fome, de saciedade e de prazer ao comer.

 Em minha clínica, raramente encontrei um paciente que, sofrendo com problemas alimentares, soubesse o que é fome e saciedade. Até aquilo que gostam de comer fica perdido, embaralhado sob muitas informações confusas sobre alimentação. Seus discursos são bastante semelhantes: afirmam que não entendem por que é que não conseguem colocar em prática todo o conhecimento que adquiriram sobre dietas ao longo de tantos anos de aprendizagem, ou que sabem tudo o que devem fazer, mas que gostam mesmo é de comer doces. Esses pacientes se vêem como desleixados, preguiçosos, gulosos e sem força de vontade. Quando pergunto por que, então, não comer apenas doces, eles se assustam bastante. Uma paciente fez a experiência de se permitir alimentos doces em todas as refeições; outra liberou o arroz com feijão que lhe havia sido proibido por mais de trinta anos. Ambas acreditavam que comeriam apenas os alimentos cortados outrora de suas vidas. Ficaram muito surpresas quando perceberam que a vontade de comer não se restringiu única e exclusivamente aos alimentos proibidos. A liberação não havia causado a enorme desordem que imaginavam em suas vidas. Pelo contrário, já nem sentiam mais tanta vontade de comer aqueles tipos de comida. A paciente que comia quarenta docinhos em festas, depois que liberou o chocolate em sua alimentação diária, passou a comer quatro ou cinco docinhos por festa – mas sentia tanta saudade dos tempos em que comia compulsivamente que, de vez em quando, se proibia de comer chocolate só para poder voltar a atacar nas festas.

Há também aqueles que comem como se estivessem diante de sua última refeição, como um condenado à morte. Porque a idéia de fazer dieta já os consome de tal maneira, os persegue com tanto êxito, que toda a refeição é considerada a última. Iniciarão a dieta na segunda-feira; então, comerão indiscriminadamente qualquer coisa durante todo o fim de semana: procuram uma forma preventiva de prazer para combater a privação imaginada no futuro. Para alguns, toda a refeição passa a ter esse caráter de última refeição, de último prazer consentido antes do início de um período de intenso desprazer. O ser humano não funciona que nem camelo, não é capaz de armazenar prazer, apenas gordura. Na prática não vemos diferença entre aqueles que realmente realizam uma dieta e aqueles que apenas fantasiam essa privação, porque a mentalidade de dieta os coloca na mesma situação de perseguição alimentar. Dessa maneira, comer passa a ser um ato perigoso que deve ser inibido e que só pode ser consentido em ocasiões especiais.

Continua amanhã.

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Comentários

  1. ONESIO comentou em 23/02/12 at 20:28

    Achei ótimo o assunto sobre dieta. Ainda mais linda, a frase “o ser humano não funciona que nem camelo”. Meus cumprimentos.

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